Por Ivan Tauil e Luis Roberto Ayoub
A Lei de Recuperação Judicial possui disposições específicas sobre tributos. São elas, na parte da recuperação judicial: o juízo da RJ/F se torna universal para processar ações, exceto as especificadas, entre as quais encontram-se as execuções fiscais, podendo o devedor solicitar as fazendas parcelamentos. Após preparado e aprovado o plano de recuperação, o devedor apresentará a certidão negativa (ou positiva com efeito de negativa) de débitos tributários como condição para a concessão da recuperação. Nas alienações de ativos corporificados em UPIs, estabelecimentos ou filiais, no curso da RJ, esses serão alienados livres de ônus e sucessão, inclusive tributários.
As Fazendas Públicas e o INSS deveriam prever, em lei específica, parcelamento especial para empresas em RJ deferindo prazo 20% superior ao de microempresas e empresas de pequeno porte — parágrafo único do artigo 68. Esse conjunto de disposições normativas, segundo a melhor doutrina, haveria criado um ambiente de incentivo para a alienação de ativos, viabilizando o ingresso de recursos para o soerguimento do agente econômico, o qual, combalido, ainda assim se demonstraria viável economicamente.
Também na parte relativa à falência: situa os tributos em terceiro lugar na preferência de créditos, após os de natureza trabalhista até 150 salários mínimos, que vem em primeiro, e os créditos com garantia real, até o limite do bem gravado, em segundo lugar — “as multas tributárias não se incluem nesta preferência, apenas os valores principais e os juros (até a data da falência)”. Elas estão após os quirografários, na sétima classe na ordem de preferência.
Tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência são considerados créditos extraconcursais e pagos com preferência aos demais, concursais.
Nas alienações de ativos não circulantes (artigo 66), singulares ou em conjunto, o arrematante terá o bem ou bens livres de quaisquer ônus, inclusive e especialmente, os tributários, trabalhistas e previdenciários, não se falando em sucessão de qualquer espécie, ressalvadas as hipóteses do parágrafo único do artigo 141, II, o qual excetua hipóteses em que o arrematante seja o falido, seu sócio ou preposto, indicado para fraudar a sucessão. A recuperação extrajudicial não se aplica a créditos tributários.
O CTN andou na mesma direção quando do advento da nova lei de falências 11.101/2005, quando, através da lei complementar nº 118/2005, inseriu os artigos 155-A e 191-A no Código Tributário Nacional, o primeiro, repetido quase que integralmente o texto do artigo 68 da Lei Falimentar, e o segundo, reproduzindo o mesmo sentido contido no artigo 57 da mesma lei. Assim configurado, o sistema revelava-se sólido e quase completo.
Desde o advento da Lei 11.101, insurgiram-se os postulantes à recuperação judicial, asseverando ser juridicamente impossível a apresentação das certidões de que tratavam os artigos 57 da Lei 11.101/2005 e 191-A do CTN, tendo em vista a inércia do legislador em produzir “norma específica” atinente ao parcelamento de tributos para empresas em recuperação judicial.
Ou seja, a inexistência de um parcelamento especial e específico para esta classe de contribuintes — parte faltante para a total integridade e completude do sistema recuperacional —, acabava por decretar a ineficácia total do instituto jurídico da Recuperação Judicial. Desta controvérsia, resultou o célebre acordão proferido nos autos do REsp 1.187.404/MT, relator ministro Luís Felipe Salomão, que entendeu, por fim, ser ineficaz e inaplicável o artigo 57 da Lei 11.101/2005 até que fosse produzida a referida legislação, restando dispensada a apresentação de CNDs para concessão da recuperação judicial.
Em 2014, o artigo 43 da Lei 13.043 introduziu o novo artigo 10-A na Lei 10.522/2002 e instituiu, assim, o parcelamento específico (exclusivamente para tributos federais) de que tratava o artigo 68, parágrafo único. Este parcelamento porém, em pouco inovou. Limitou-se a expandir de 60 para 84 meses o prazo de parcelamento, nas condições ali especificadas, veiculado como artigo de uma lei geral sobre parcelamentos de créditos junto à União.
Também como referiram expoentes da doutrina, a pífia iniciativa legislativa continuou a desprezar os princípios constitucionais e infraconstitucionais que requerem eficácia garantidora da continuidade das empresas que contribuem para o desenvolvimento econômico e conferem dignidade às pessoas humanas através do emprego e da renda por ele gerada.
As tensões continuaram e os juízes simplesmente ignoraram o suposto “atendimento” ao comando do artigo 68 da Lei de Recuperação Judicial, introduzido pela Lei 13.043, talvez porque não tenha ela, se não apenas formalmente, cumprindo o requisito, mas não materialmente, vez que por sua modicidade e timidez não alcança sequer parcialmente a satisfação dos valores, princípios e interesses que governam e o orientam o referido instituto.
Ademais, somada à questão da não apresentação de certidões e consequente concessão da recuperação independentemente de regularidade fiscal, verifica-se igualmente a controvérsia quanto a possibilidade de a Fazenda realizar atos de constrição patrimonial contra empresas em recuperação judicial, o que suscitou o Tema 987 na sistemática dos recursos repetitivos no STJ.
A complexidade se acentua com a indagação sobre qual, efetivamente, o juízo competente para conduzir atos de constrição em relação as empresas em recuperação. O STJ decidiu o conflito de competência nº 153.998 e definiu que a 2ª Seção seria competente para dirimir o conflito de competência 149.622 “em que tanto o juízo federal da execução fiscal quanto o juízo recuperacional se declararam competentes para julgar a suspensão da execução fiscal ajuizada em face de empresa em recuperação judicial em que há penhora de bens”, como informa a matéria desta ConJur.
Tal imbróglio, afirmam os procuradores da Fazenda Nacional, acaba fazendo letra morta várias disposições que concedem garantias e privilégios ao credito tributário, tornando inócuo o instituto da execução fiscal, a qual não consegue atingir o objetivo de satisfazer o interesse “público”, corporificado em de fato realizar o credito tributário a que faz jus a Fazenda.
Em meio a essa intensa beligerância entre Fisco e contribuintes recuperados, e talvez para igualar um placar do jogo que parecia estar sendo vencido por estes últimos, houve por bem o TJ-SP, ao julgar a Apelação 1011975-61.2019.8.26.0491, decidir que a Fazenda Pública está, sim, legitimada para requerer a falência do devedor quando do insucesso da execução fiscal. Tal julgado sinaliza uma mudança possível do entendimento, até então sedimentado na jurisprudência do STJ construída a partir do Resp 164.389/MG. Esse acórdão do TJ parece ter visualizado que, em certos casos, especialmente quando o devedor se esquiva propositalmente do cumprimento de sua obrigação, objeto da execução, em conduta abusiva e inidônea, a Fazenda está legalmente legitimada e pode requerer a falência do devedor.
Veja-se porém, que não se está a afirmar que esta deva ser regra, mas sim exceção, pois em nada interessa diretamente ao Fisco, a quebra da empresa produtora de riqueza. A História demonstra que a arrecadação de tributos no ambiente falimentar, desde os tempos do decreto anterior, é, simplesmente desprezível. O requerimento da falência seria, portanto, mais disciplinador e moralizador do que verdadeiramente arrecadatório.
Nessa toada, e em meio a este contexto jurídico-moral estabelecido no contexto das recuperações judiciais e insolvências intencionais, adveio a decisão do ministro Fux, proferida em medida liminar nos autos da Reclamação n° 43.169 9, que suspendeu a decisão proferida por órgão fracionário do STJ no Recurso Especial nº 1.864.625/SP, sob o fundamento de sua violação à Súmula Vinculante n° 10 (que veda o afastamento de lei ou ato normativo, no todo ou em parte, sem atendimento à cláusula de reserva de plenário ou full bench — artigo 97 da Constituição Federal de 1988) e determinou que, em vista das inovações legislativas referentes à Lei 13.043/14 e, principalmente, à Lei 13.988/2020, não haveria mais que prevalecer o entendimento esposado na decisão do Resp 1.187.404/MT.
Em síntese, assevera o ministro em sua decisão que:
1) A apresentação de certidões, na forma dos artigos 57 da Lei 11.101 e 191-A do CTN, integra um sistema único de recuperação de empresa, o qual não apenas requer o entendimento com credores privados, mas, igualmente, a regularização de suas pendências junto ao Fisco, sem o que, não se pode presumir que uma empresa esteja regular para funcionar;
2) A não regularização fiscal propicia o desenvolvimento de um ambiente de continuidade das execuções fiscais, as quais, se não satisfeitas pelo pagamento espontâneo, necessariamente desencadeiam atos de constrição patrimonial do devedor, o que ocorre de modo desarmonioso, não planejado e absolutamente desconectado com o plano de recuperação eventualmente apresentado e aceito pelos credores. Instaura-se portanto um conflito silencioso entre a sociedade, representada pelo Estado fiscal, titular do crédito tributário, e a comunidade de credores, interessada na concretização da recuperação da devedora e a satisfação (ainda que parcial) de seus créditos inadimplidos. A regularização fiscal, contemporânea à aprovação do plano de recuperação, evita este entrechoque e harmoniza os interesses em choque.
3) Os elementos que deram causa ao entendimento contido no Resp 1.187.404/MT não mais se verificam, não somente pelo advento do parcelamento previsto na Lei 13.043/14, como também pela introdução do instituto da transação tributária através da Lei 13.988/2020.
A referida decisão é importante não somente por alterar o entendimento pretoriano que prevaleceu desde o Resp 1.187.404/MT, mas igualmente porque traz algumas questões que devem ser analisadas pela comunidade jurídica, envolvida no tema da insolvência e da preservação das empresas brasileiras, a saber:
Muito ainda temos por avançar nesta seara. Com a palavra, os senhores juízes e os senhores procuradores da Fazenda.
https://www.conjur.com.br/2020-out-24/tauil-ayoub-regularidade-fiscal-recuperacao-judicial