Questão problemática que circunda os processos de recuperação judicial diz respeito aos créditos oriundos dos negócios fiduciários e a sua não inclusão nos planos de soerguimento da empresa.
Isto porque não se submetem aos efeitos deste tipo de processo, já que o titular do crédito, possui direito real sobre bem próprio, o qual lhe foi dado em garantia de um negócio jurídico principal. Estar-se-á diante da denominada trava bancária, a qual está prevista no artigo 49, §3º da Lei 11.101/2005.
Na prática, o que se observa de modo frequente é que empresários, diante da necessidade de contratarem empréstimos junto as instituições financeiras, alienam ou cedem seus recebíveis futuros, em garantia do negócio jurídico principal.
Diante deste cenário, a situação que se descortina é: tornou-se comum em processos de recuperação judicial, pedidos direcionados para a “quebra da trava bancária”, haja vista a necessidade premente das empresas recuperandas receberem parte dos recebíveis futuros, anteriormente cedidos ou alienados.
Um dos fundamentos jurídicos avocados para a quebra da trava, é o princípio da preservação da empresa viável, previsto no artigo 47 da lei em estudo, sendo certo que devem ser adotadas, tantas quantas forem as providências necessárias, para que empresas viáveis permaneçam operando.
Em sendo assim, diante de tais considerações há uma verdadeira incerteza nos pleitos que envolvem os processos de recuperação judicial, quanto ao pedido de quebra da trava bancária, pois, se por um turno há a vedação expressa da submissão de créditos advindos de negócios fiduciários, no processo de recuperação judicial, por outro, há um movimento jurisprudencial (ainda que tímido) de flexibilização da letra da lei.
Entendimento jurisprudencial: situações autorizadoras da quebra da trava bancária
Analisando a jurisprudência pátria, é possível perceber que o entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça é pelo reconhecimento da extraconcursalidade dos créditos aqui estudados e a sua não submissão aos efeitos dos processos de recuperação judicia. No entanto, há um movimento jurisprudencial ganhando notoriedade nas cortes brasileiras.
O Tribunal de Justiça de São Paulo capitaneia a discussão, em precedente abaixo demonstrado, ao julgar recurso de empresa com atuação no ramo de confecções e, gravemente impactada pela crise econômica advinda da Covid-19, entendeu ser possível que os ativos financeiros submetidos a cessão fiduciária, permanecessem na posse da devedora fiduciante, podendo, ser considerados bens essenciais.
Referida decisão levou em consideração critérios importantes: 1) estar em curso o período de “stay”; 2) análise dos documentos contidos nos autos que demonstram a necessidade de medidas urgentes (laudo pericial, balancetes, relatório do administrador judicial etc.) para a suspensão da retenção dos valores, 3) não se trata de uma “quebra” da garantia fiduciária mas sim de uma suspensão temporal da sua eficácia; 4) não há extinção do direito das instituições financeiras, mas sim uma modulação diante de recuperação judicial:
“Considerado estar em curso o período de “stay”, tal qual previsto no §4º do artigo 6º do mencionado diploma de regência, e estar sendo ocasionado, pelo que é retratado nos autos, um estrangulamento absoluto e uma drenagem da liquidez do caixa da recuperanda, criado óbice de relevância extremada para a preservação da empresa, os ativos financeiros submetidos a cessão fiduciária, ressaltada a excepcionalidade, devem permanecer na posse da devedora fiduciante, podendo serem considerados bens essenciais. A garantia instituída, adotada esta solução, não está sendo extinta, estabelecendo-se, isso sim, uma suspensão de sua eficácia, com o escopo de permitir possa, durante o perído de ‘stay’, ser obtido um mínimo de sucesso no desenvolvimento do trâmite do procedimento concursal. Atende-se, com isso, a um critério de eficiência na distribuição de direitos e deveres obrigacionais, postergada a possibilidade de utilização dos créditos objeto da cessão fiduciária.”
(TJ-SP; Agravo de Instrumento 2159261-69.2020.8.26.0000; relator (a): Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de José Bonifácio – 1ª Vara; Data do Julgamento: 4/11/2020; data de registro: 6/11/2020)
No mesmo sentir, decisões importantes vêm sendo proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Em recente precedente autorizou que, excepcionalmente, parte dos recebíveis futuros possam vir a ser percebidos pela empresa recuperanda durante o stay period.
“Agravo de Instrumento. Ação de Recuperação Judicial. “Trava bancária”. Decisão que deferiu parcialmente pedido de flexibilização dos direitos de propriedades dos credores fiduciários das recuperandas. Irresignação do Banco Safra S.A., credor das recuperandas. Crédito com garantia fiduciária que não se submete aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, § 3º, da Lei nº 11.101/05. No entanto, os precedentes deste Tribunal são no sentido de que é possível a flexibilização da chamada “trava bancária”, em observância ao princípio da preservação da empresa, para evitar que se inviabilize o soerguimento das empresas recuperandas. Decisão que não merece reparo. DESPROVIMENTO DO RECURSO.”
(TJ-RJ – AI: 00200158220238190000 202300227333, Relator: Des(a). SIRLEY ABREU BIONDI, Data de Julgamento: 02/08/2023, SEXTA CAMARA DE DIREITO PRIVADO (ANTIGA 13ª CÂMARA, Data de Publicação: 04/08/2023) (grifo do articulista)
Em outra decisão [1], promoveu a quebra da trava bancária de modo parcial, liberando 70% dos valores objeto de cessão fiduciária de direitos creditórios garantido por recebíveis, uma vez que restou demonstrada “que se fosse autorizado o recebimento integral dos créditos representados pelos recebíveis futuros, performados ou não (caso tenha ou não ingressado em conta o valor da operação), em poucas semanas seria inviável a manutenção das operações comerciais das agravadas.”
Ou seja, percebe-se de modo objetivo que em ambas as decisões alguns pontos foram levados em consideração: 1) a quebra da trava bancária é medida excepcional, sendo admitida apenas através de uma análise casuística da situação; 2) deve ser feita por juiz competente para julgar a ação recuperacional, após uma análise fática e probatória; 3) não deve ser por tempo indeterminado, sendo indicado que a mesma ocorra por apenas um curto lastro de tempo para que a empresa pleiteante recupere-se da crise aguda instaurada.
Denota-se, portanto, que a quebra (ou suspensão) da trava bancária, não é medida geral, mas sim, deve ocorrer de modo pontual e seguro, sob pena de gerar insegurança jurídica.
Conclusões
As incertezas sobre o tema se dão em razão da necessidade de não se esvaziar o instituto da recuperação judicial. Logo, faz-se mister encontrar um equilíbrio entre a preservação da empresa viável e a autonomia privada pautada nos interesses dos credores (FERNANDES, 2011, p. 49). Os julgados em estudo, confirmam essa afirmação.
Entende-se, como conclusão deste estudo, que o magistrado responsável pelos processos de recuperação judicial, é a pessoa habilitada para analisar de forma detida os elementos probatórios acostado aos autos.
Balancetes contábeis, cálculos periciais demonstrando a viabilidade da empresa, estudos técnicos que testifiquem que a situação de crise não é generalizada, relatórios, inclusive do Administrador Judicial, demonstrando que há um desencontro entre o fornecimento da atividade e o recebimento de valores, análise fática devidamente demonstrada por provas, incidência do stay period, e assim sucessivamente, são alguns dos requisitos que devem ser utilizados quando do deferimento do pedido de quebra da trava.
A medida deve ser excepcional, por isso a máxima cautela deve ser observada. Porém, há de se dizer que embora excepcional, por vezes, é necessária, pois a decretação da falência de uma empresa reverbera em prejuízos de ordens financeiras, econômicas e sociais.
Trava bancária: cenário de incertezas nos processos de recuperação judicial (conjur.com.br)