A Lei nº 14.112/20 promoveu relevantes alterações na Lei nº 11.101/05, com o objetivo de aprimorar o regime de insolvência brasileiro, aproximando-o de práticas modernas e reforçando a segurança jurídica nas relações entre devedores em crise e credores.
Dentre as inovações introduzidas, destaca-se a inclusão do §10º ao artigo 10 [1], que fixou, de forma expressa, o prazo decadencial de três anos para o ajuizamento de habilitações e de pedidos de reserva de crédito no âmbito dos procedimentos falimentares, contados da data da publicação da sentença que decretar a falência.
A previsão normativa atende ao anseio de agilidade na condução do processo falimentar [2], respaldando-se no já existente prazo de três anos para extinção das obrigações do falido após a decretação da quebra [3], e busca trazer estabilidade e segurança jurídica à falência. Contudo, a aplicação prática do dispositivo tem gerado questionamentos relevantes para falências decretadas antes e após a sua vigência.
Nesse sentido, emergiram duas problemáticas interpretativas de grande interesse prático e teórico: (1) o termo inicial do prazo decadencial nas falências decretadas antes da entrada em vigor do §10º do artigo 10, considerando os impactos do direito intertemporal e da irretroatividade das normas processuais materiais; e (2) a contagem do prazo decadencial para créditos constituídos ou reconhecidos após transcurso dos três anos, especialmente em hipóteses de créditos ilíquidos, controvertidos ou dependentes de definição em outras esferas jurisdicionais.
O debate exige ponderação entre a segurança jurídica que a norma pretende conferir e a efetividade do direito do credor, cuja pretensão não pode ser inviabilizada por circunstâncias alheias à sua vontade, como a constituição tardia ou a própria ciência do crédito.
É nesse contexto que este artigo se propõe a analisar de forma breve, mas crítica, o alcance do artigo 10, §10º, da Lei nº 11.101/05, sem perder de vista os novos contornos trazidos pela Lei nº 14.112/20 ao regime falimentar.
Falências anteriores à alteração legal
Que a disposição constante do §10º do artigo 10 da Lei nº 11.101/05 se restringe a processos falimentares — assim não abarcando recuperações judiciais — e a habilitações e pedidos de reserva de créditos — não alcançando impugnações —, não há quaisquer dúvidas, tendo em vista a clareza de sua redação quanto a estes aspectos.
A primeira problemática, entretanto, surgiu quanto ao termo inicial do prazo decadencial nas falências decretadas anteriormente à sua vigência.
O §10º estipula que a decadência sobre o direito de habilitar ou reservar créditos na falência se iniciaria a partir da data de publicação da sentença que decretasse a quebra do devedor. Paralelamente, o artigo 5º, caput, da Lei nº 14.112/20, previu que esta se aplicaria imediatamente aos processos pendentes.
Em outras palavras, o prazo decadencial para habilitações e reservas de crédito foi constituído com eficácia imediata sobre todos os processos falimentares, tanto anteriores quanto posteriores à sua vigência.
E disso sobreveio a seguinte controvérsia: se uma determinada falência já havia sido decretada há mais de três anos antes da vigência da norma, estariam todos os credores que não habilitaram ou reservaram os seus créditos com os seus respectivos direitos fulminados?
Neste tocante, a resposta da jurisprudência foi célere e sem maiores complicações.
No âmbito do Tribunal de Justiça do Paraná, em meados de 2022 já sobrevieram decisões colegiadas solucionando a questão [4]. Na ocasião, pautando-se no artigo 5º, XXXVI, da Constituição [5], entendeu-se que o prazo decadencial criado não poderia afetar de forma imediata aqueles credores falimentares existentes antes da vigência da norma, vez que, até então, não existiam prazos para habilitar ou reservar os respectivos créditos no processo falimentar.
Com efeito, reconheceu-se a irretroatividade da norma criada, a qual não poderia ter o seu termo inicial existente antes de sua própria vigência, sob pena de extinguir de forma automática o direito de credores que, até então, não estavam submetidos a qualquer prazo decadencial.
Convencionou-se, assim, que para falências decretadas antes da Lei nº 14.112/20, o prazo decadencial do §10º do artigo 10 passaria a correr a partir de sua própria vigência, ou seja, 23/1/2021 – 30 dias após a publicação oficial da lei, vide artigo 7º.
Atualmente, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, há apenas um julgado colegiado tratando da matéria (REsp 2.110.265/SP), oriundo da 3ª Turma e de relatoria do ministro Ricardo Villas Boas Cueva, mas que igualmente respaldou o entendimento em questão.
Apesar de aparentemente solucionada esta parte da aplicação da norma em questão, outra controvérsia vem ganhando força no que diz respeito ao início do prazo em questão sobre os créditos não definitivamente constituídos.
Termo inicial da decadência e créditos não definitivos
Resolvida a discussão quanto às falências anteriores e posteriores à nova lei, as atenções agora se voltam aos casos nos quais o crédito só se tornou líquido e/ou definitivamente constituído após a decretação da falência e após a própria vigência da Lei nº 14.112/20.
Imagine-se duas situações hipotéticas: a primeira, na qual uma falência é decretada em 2020, mas um determinado crédito concursal é definitivamente constituído apenas em 2026; e o segundo, no qual a falência é decretada em 2022, mas um determinado crédito concursal também é definitivamente constituído apenas em 2026.
O que há de comum em ambos os casos? O fato de que tanto a partir da decretação da falência, quanto a partir da vigência da Lei nº 14.112/20, os créditos concursais em questão foram definitivamente constituídos após o transcurso do prazo decadencial ora analisado.
Com isso surge a dúvida se os respectivos credores poderiam ainda pleitear a habilitação e/ou reserva destes valores, ou se este direito estaria fulminado pela decadência.
Em outras palavras, haveria outros marcos iniciais do prazo decadencial em questão para além da data da publicação da sentença da quebra ou da data da vigência da nova legislação?
A jurisprudência, nesta ocasião, vem apresentando duas vertentes sobre o tema.
O primeiro entendimento é o de que o prazo decadencial do §10º deve ser visto de forma objetiva, não admitindo prorrogação, suspensão ou interrupção, na linha do disposto no artigo 207 do Código Civil [6]. Ou seja, ou este prazo se inicia com a publicação da decretação da quebra ou com a vigência da Lei nº 14.112/20, caso se trate de falência anterior.
Sustenta-se que o credor tem o poder-dever de apresentar pedido de reserva para evitar a preclusão do direito de ver o seu crédito, ainda que ilíquido e/ou sem trânsito em julgado, indicado na relação de credores, não devendo o processo falimentar aguardar a sua definitiva constituição e liquidação para que a sua inclusão pudesse ser pleiteada pelo respectivo titular. Tal corrente se alia, em suma, ao ideal de celeridade buscada pelas alterações legais promovidas em 2020.
Neste sentido, pode-se indicar as decisões colegiadas proferidas nos seguintes recursos e tribunais: AI 0057242-22.2025.8.16.0000/TJ-PR; AI 2204581-06.2024.8.26.0000/TJ-SP; AI 2167185-58.2025.8.26.0000/TJ-SP; AI 5050416-04.2024.8.24.0000/TJ-SC; e AI 2042908-67.2025.8.26.0000/TJ-SP.
Ocorre que a adoção destes critérios objetivos levaria a casos nos quais o credor, tendo o seu crédito reconhecido ou constituído em decisão judicial, automática e imediatamente estaria com o seu direito de habilitação e de reserva fulminado pela decadência, vez que já transcorrido o prazo trienal previsto em lei.
Este viés se revela temerário, especialmente considerando que, uma vez decretada a falência, os prazos prescricionais das obrigações do devedor ficam suspensos, à luz do artigo 6º, I, da Lei Falimentar, podendo o credor ajuizar a sua ação de conhecimento a qualquer tempo contra a massa falida para ver o seu crédito constituído/reconhecido.
De outro lado, há o segundo entendimento, no sentido de que o prazo decadencial do artigo 10, §10º, da Lei Falimentar, somente se iniciaria com o trânsito em julgado da decisão que liquidasse o crédito em questão.
Dita interpretação é pautada na previsão constante do artigo 6º, §1º, da Lei nº 11.101/05, segundo a qual “terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida”. Entende-se, assim, que o juízo falimentar apenas pode conhecer determinado crédito quando efetivamente constituído e liquidado, motivo pelo qual não haveria como o prazo decadencial se iniciar antes deste marco.
Seguindo esta interpretação, localizou-se as decisões colegiadas proferidas nos seguintes recursos e tribunais: AI 0106459-68.2024.8.16.0000 TJ-PR; AI 2163836-47.2025.8.26.0000/TJ-SP; APL 0790308-84.2024.8.07.0016/TJ-DFT; AI 0026323-55.2022.8.16.0000/TJ-PR; e AI 0057529-19.2024.8.16.0000/TJ-PR.
A problemática desta interpretação reside justamente no fato de ir na contramão do regime proposto pela Lei nº 14.112/20. Se o reconhecimento de um crédito pode levar vários anos, a sua liquidação definitiva pode levar ainda mais, sendo certo que a Lei Falimentar prevê o pedido de reserva como instrumento hábil que pode e deve ser utilizado nestas ocasiões para, ao menos, dar previsibilidade na apuração do passivo da falência.
Inobstante cada vertente tenha o seu fundo de verdade, fato é que, atualmente, há insegurança jurídica quanto à sua aplicação, vez que cada uma atribui um resultado diferente a uma mesma controvérsia.
Nos casos hipotéticos lançados anteriormente, por exemplo, a aplicação da primeira vertente culminaria na perda do direito de habilitação dos créditos constituídos, vez que já transcorridos os três anos desde a vigência da norma e a decretação da quebra; já a aplicação da segunda vertente levaria à conclusão de que o prazo decadencial ainda não transcorreu, vez que iniciado apenas com a constituição definitiva dos créditos.
Em que pese a divergência de resoluções que a aplicação de cada interpretação implica no plano fático, aparenta-se que estas podem ter determinados aspectos unidos com a finalidade de se encontrar uma terceira via para solucionar a questão.
Trata-se de reconhecer que o direito de habilitação ou reserva apenas nasce quando o crédito é reconhecido ou constituído no plano jurídico, ainda que por decisão não definitiva, e que o prazo decadencial somente pode ser iniciado a partir desse surgimento.
Evitar-se-ia, assim, tanto a rigidez da primeira vertente — que fulminaria pretensões antes mesmo de serem constituídas — quanto a postergação indefinida da segunda — que esvaziaria a função saneadora do prazo decadencial.
Nessa linha, a existência do crédito, para fins falimentares, pode ser reconhecida ainda que não definitivamente liquidado e/ou sem trânsito em julgado, visão esta que se revela razoável considerando que a própria legislação processual permite o cumprimento provisório de decisões (art. 520 e seguintes do Código de Processo Civil).
A partir desta premissa, o termo inicial da decadência do direito de habilitação não pode ser anterior ao nascimento deste próprio direito.
De outro lado, para que a falência não fique sujeita à espera da constituição e liquidação definitiva de um crédito, a Lei nº 11.101/05 já oferece o pedido de reserva como ferramenta que pode e deve ser utilizada pelos credores, já que permite que créditos ilíquidos, controvertidos e/ou dependentes de outra jurisdição sejam desde logo identificados e considerados na falência, conferindo previsibilidade ao passivo e segurança ao prosseguimento do processo.
Veja-se que esta concepção não ignora os valores tutelados por cada corrente, pois mantém a celeridade e previsibilidade do processo falimentar ao exigir do credor postura ativa e utilização do pedido de reserva (primeira vertente), e preserva o direito material, ao afastar a hipótese de decadência prematura, aplicável a quem não podia habilitar aquilo que ainda não havia sido juridicamente reconhecido ou constituído (segunda vertente).
Conclusão
A inclusão do §10º ao artigo 10 da Lei Falimentar, com a instituição do prazo decadencial de três anos para habilitação e reserva de créditos na falência, representou avanço importante no regime falimentar, trazendo maior previsibilidade e um meio para se evitar a eternização das falências.
Contudo, a sua aplicação a créditos constituídos tardiamente exige interpretação que concilie a segurança jurídica buscada pela Lei nº 14.112/20 com a tutela efetiva dos credores.
Entre as correntes que hoje se contrapõem na jurisprudência, uma privilegia a objetividade do termo inicial da decadência, ainda que isso signifique fulminar direitos antes de seu surgimento; já a outra subordina o início da contagem à liquidez definitiva, correndo o risco de inviabilizar o escopo saneador do instituto. Como demonstrado, nenhuma delas, isoladamente, oferece solução inteiramente satisfatória.
Este brevíssimo estudo buscou trazer uma alternativa equilibrada: o prazo decadencial apenas pode fluir quando o direito de habilitação e reserva surge validamente, qual seja no momento em que o crédito é reconhecido ou constituído em decisão ainda que provisória.
Incumbe ao credor, a partir desse momento, adotar postura ativa e lançar mão do pedido de reserva, garantindo que seu crédito seja desde logo considerado na apuração do passivo e, uma vez liquidado em definitivo, possa assumir sua definição final no quadro de credores, sem prejuízo à marcha do processo falimentar.
Termo inicial do prazo decadencial da habilitação na falênciaConsultor Jurídico