A agricultura e o agronegócio contribuíram com 23,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2017, estimado em R$ 6,6 trilhões, segundo levantamento da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A safra recorde levou o setor agrícola a crescer 13% em 2017, no melhor desempenho desde o início da série histórica do IBGE, em 1996, superando o avanço de 8,4% registrado em 2013. Em 2018, se não houver sobressaltos, a participação no PIB crescerá entre 0,5 e 1%.
Toda essa pujança, paradoxalmente, não livra o setor de crises, pois a agropecuária, lá na base, é uma indústria a céu aberto. Além dos riscos climáticos, os produtores enfrentam os humores da cotação do dólar e do mercado, o aumento desenfreado no preço dos insumos (defensivos, adubos e combustíveis), a falta de linhas de financiamento, o protecionismo comercial de competidores do exterior, entre outros fatores. As sucessivas crises por que passou o agro nos últimos 15 anos deixaram muitos agropecuaristas descapitalizados e, principalmente, endividados. Extraoficialmente, calcula-se que essas dívidas estejam na casa dos R$ 300 bilhões.
Quem opera no agronegócio como empresa conta com os benefícios da Lei de Falências e Recuperação Empresarial (Lei 11.101/2005), que, em junho, completou 13 anos. Aliás, neste período, mais de 5 mil empresas da indústria, do comércio e da prestação de serviços ajuizaram pedidos de recuperação judicial em todo o país. Sem dúvidas, foi um grande avanço em relação à vetusta Lei de Falências (Decreto-Lei 7.661/1945), pois, pela primeira vez, o sistema concursal deixa de proteger prioritariamente o credor, tutelando, principalmente, o devedor. Sai de cena o imperativo de liquidação e entra o princípio basilar da preservação da empresa.
As empresas em dificuldade, antes de tudo, têm de satisfazer o critério do artigo 48 da LFRE, que, entre outros, é provar o exercício da atividade empresarial há mais de dois anos. Comprovado esse exercício, passam a ter direito a uma série de vantagens, além de evitar o processo de falência: alongamento dos prazos de pagamento e redução da dívida, realização de acordos coletivos de trabalho, melhor diálogo com os credores e, o mais importante, a suspensão das ações e execuções judiciais em curso.
Renegociando passivos com credores e fornecedores, e estancando a sangria de recursos, vital para a retomada do ciclo virtuoso econômico, a empresa em dificuldades tem chances reais de dar a volta por cima. Decerto, muitas vão provar viabilidade econômica e sair vencedoras da situação recuperacional; outras, sem viabilidade, irão falir, cedendo lugar a players mais competitivos. Faz parte do jogo. É inegável, entretanto, que se trata de uma solução benéfica para todas as partes: proprietários, gestores, colaboradores, credores ou fornecedores da empresa recuperanda.
Já as cooperativas e os produtores rurais pessoas físicas vivem outra realidade, pois, apesar de produzirem e comercializarem produtos do agro, não são empresários à luz do Código Civil (Lei 10.406/2002). As cooperativas agrícolas, por exemplo, se dedicam às mesmas atividades dos empresários e atendem aos mesmos requisitos legais — atuam com profissionalismo, possuem atividade econômica organizada e uma produção/circulação de bens ou serviços —, mas não se submetem ao regime jurídico-empresarial. Antes, são reguladas pela legislação que define a Política Nacional de Cooperativismo, consubstanciada na Lei 5.764/1971. E também no Capítulo VII do Código Civil, pelos artigos 1.093 a 1.096. Em resumo, são sociedades simples que, embora almejem retorno econômico, não visam ao lucro, mas às sobras para os seus associados. Tudo se resume a atos cooperativos. Logo, a cooperativa não tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro.
Sobra o produtor rural que, em princípio, não tem direito à recuperação se continuar como pessoa física. Na verdade, é importante destacar, a legislação brasileira permite que o produtor rural assuma tanto a forma civil quanto a empresarial, como sinaliza o artigo 971 do Código Civil. No primeiro caso, isso significa que ele pode atuar como pessoa física ou como sociedade simples; no segundo, tornar-se empresário individual ou formar uma sociedade empresária, com a devida inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis. Tudo facultativo, não obrigacional. Mas, nesta última opção, ele conquista a condição de empresário e, por óbvio, pode gozar dos benefícios da LFRE.
E aqui é preciso frisar que só é empresa a atividade econômica organizada, que engloba, de forma encadeada, quatro fatores de produção: capital, mão de obra, insumos e tecnologia. Assim, não pode ser considerado empresário quem planta ou cria de vez em quando ou que se dedica a essas atividades apenas para o seu próprio sustento e o da sua família, a chamada atividade da mão para a boca, comum na agricultura familiar — nicho, aliás, altamente protegido e subsidiado por generosas verbas e políticas públicas.
O produtor rural pessoa física, que investe às suas expensas e corre enormes riscos, que não conta com a hiperproteção do Estado e não virou empresário, na acepção do termo legal, é o que amarga os efeitos deletérios da crise no agro, que se agravou a partir de 2015. Milhares de produtores rurais pessoas físicas não conseguem mais arcar com seus compromissos e enfrentam o risco real de perderem o seu patrimônio pessoal para pagar os credores. Nesse rol, figuram grandes produtores de grãos (soja, milho e arroz, principalmente), de algodão e pecuaristas, entre outros, que, além dos financiamentos públicos, contraíram muitas dívidas para poder formar a lavoura ou preparar o rebanho. Esse grupo vê a recuperação judicial como a tábua de salvação.
De regra, a Justiça vem barrando os pedidos de recuperação judicial de produtores não empresários, ou daqueles que, mesmo registrados na junta comercial, por serem empresários de fato, não perfectibilizaram o prazo mínimo. Mas não só isso, pior ainda: a maior parte da jurisprudência dos tribunais de Justiça se posiciona contra a recuperação judicial do produtor pessoa jurídica, mesmo com a devida prova de sua condição.
Entretanto, oxalá!, uma recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo pode mudar esse quadro e abrir as portas da esperança para os produtores. Em decisão proferida no dia 9 de maio, o colegiado entendeu que, tratando-se de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo por meio da Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica (DIPJ), desde que entregue no prazo ao Fisco. Essa possibilidade vem embutida no parágrafo 2º do artigo 48 da LFRE, introduzida na Lei 12.873, de 2013. Registra o acórdão do Agravo de Instrumento 2018.0000341952, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP:
Entende-se, daí, que não é necessária a inscrição na Junta Comercial há pelo menos 2 anos para que o empresário produtor rural possa requerer a recuperação judicial, pois pode fazer prova do exercício da atividade rural por outro meio, que não a inscrição de seus atos constitutivos na Junta Comercial.
O precedente histórico segue na direção do que pensa um dos maiores doutrinadores do Brasil, o professor titular de Direito Comercial da PUC-SP e autor do livro Comentário à Lei de Falências e Recuperação, Fábio Ulhoa Coelho. Em recente parecer, o jurista reconhece, primeiro, que exigir apenas do produtor a prova de requisito temporal para fins de recuperação judicial afronta o princípio da igualdade, insculpido no artigo 5º da Constituição da República. E, segundo, que a solução para a inclusão dos produtores vem mesmo com o parágrafo 2º do artigo 48 da LFRE. E com um detalhe: já que a DIPJ não existe mais, como principal instrumento de prestação de contas ao Fisco, o produtor pode se valer da Escrituração Contábil Fiscal (ECF), criada pela Instrução Normativa 1.422/2013, da Receita Federal.
Nos ensinamentos de Ulhoa Coelho, o produtor rural pessoa física faz jus à recuperação judicial, mesmo que tenha providenciado o seu registro na junta comercial exclusivamente no intuito de preencher o requisito relacionado à empresarialidade. Como a LRFE não preceitua um prazo mínimo de existência do registro na junta comercial, para admitir a recuperação, qualquer que tenha sido a data da inscrição prova o requisito, desde que anterior ao pedido.
Como se constata, os produtores rurais de todo o Brasil vêm sendo impedidos de resolver sua situação de insolvência por mera formalidade, pois não é um registro em junta comercial que torna alguém empresário, e sim o fato de exercer profissionalmente a atividade. Primazia da realidade, como dizem os doutrinadores. Afinal, ninguém sobrevive no meio rural sem dispor de abundante capital, utilizar mão de obra especializada, aplicar grande quantidade de insumos e contar com alta tecnologia, porque a lucratividade no setor é feita de pequenas margens — e sazonalmente. É mister ser profissional para encarar esse desafio.
César Peres é sócio do Cesar Peres Advocacia Empresarial, especializado em Direito Empresarial e membro da Comissão Especial de Falências e Recuperação Judicial da OAB-RS e da Turnaround Management Association – TMA Brasil.
Revista Consultor Jurídico, 28 de julho de 2018, 6h49
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