Conforme se passa a explicar, existe a possibilidade do pedido de recuperação judicial em conjunto por sociedades empresariais do mesmo grupo econômico.
Em primeiro momento, todavia, faz-se necessário esclarecer o conceito de grupo econômico. Para Nelson Eizirik, grupo econômico trata-se de uma técnica de concentração empresarial, veja-se [1]:
“O grupo de sociedades constitui uma técnica de concentração empresarial mediante a qual 2 (duas) ou mais sociedades, sendo um dominante e as demais dominadas, unem-se sob uma mesma direção para alcançar objetivos comuns.”
Os grupos, por sua vez, podem ser de fato ou de direito. Será de direito quando houver algum acordo estipulando a união das sociedades e de fato quando as sociedades possuírem participação no capital das outras, sujeitas ao poder de controle. Quanto ao grupo de fato, Rubens Requião [2] assim conceitua: “junção de sociedades, sem a necessidade de exercerem entre si, um relacionamento mais profundo, permanecendo isoladas e sem organização jurídica”.
Nessa linha de raciocínio, levando em consideração o crescente número de grupos de sociedades, iniciou-se uma discussão jurisprudencial e doutrinária quanto à possibilidade de recuperação judicial dos conglomerados empresariais, especialmente porque a Lei nº 11.101/05 nada dispunha quanto ao tema.
Inicialmente, houve permissão incondicionada quanto à formação de litisconsórcio ativo em recuperações judiciais, sobretudo pelo reconhecimento desta possibilidade na recuperação judicial do Grupo Varig [3]. Todavia, em razão da generalização do tema, o STJ [4], na recuperação judicial do Grupo Naoum, pela ausência de previsão na Lei nº 11.101/05, anulou o processo recuperacional.
Tendo em vista os entendimentos prosperados nas recuperações judiciais das empresas Varig e OAS [5], passou a se entender que a consolidação processual autorizaria, por si só, a união dos ativos e passivos de todas as empresas de determinado conglomerado empresarial, ou seja, se desconsideraria a autonomia patrimonial tal como numa desconsideração da personalidade jurídica, hipótese que se denominou como “consolidação substancial” [6].
Pela extensão de interpretação quando ao tema, no sentido de ser viável ou não a unificação dos ativos e passivos de empresas pela simples existência de litisconsórcio ativo, em 2019, se editou o enunciado 98 no plenário da 3ª Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, pelo qual: “A admissão pelo juízo competente do processamento da recuperação judicial em consolidação processual (litisconsórcio ativo) não acarreta automaticamente a aceitação da consolidação substancial”.
Assim, embora controverso o modo de aplicabilidade dos institutos, pode-se dizer que a doutrina e a jurisprudência, desde a Lei nº 11.101/05, admitem a recuperação judicial dos grupos empresariais mediante a utilização do mecanismo da consolidação processual e/ou substancial.
Esses temas, todavia, muito embora tenham sido tratados de forma igualitária por muitos juízes, são diferentes e possuem tratamentos jurídicos específicos.
Em razão disso, aliás, como também se demonstrará, com a advento da Lei nº 14.112/20, os temas foram expressamente codificados e delimitados, trazendo certa previsibilidade em relação (1) a possibilidade de recuperação judicial dos grupos empresariais; e (2) ao modus operandi da consolidação processual e substancial.
Consolidação processual e substancial.
A consolidação processual trata-se, nada mais, do que a admissão de formação de litisconsórcio ativo em relação às sociedades empresariais que ingressarem com pleito recuperacional, fato que não acarreta, necessariamente, a união dos ativos, conforme leciona Maria Isabel Vergueiro de Almeida Fonatana [7]: “[…] Tal processamento conjunto não acarreta necessariamente a união de ativos, unificação da lista de credores e do plano de recuperação judicial”.
Em tal espécie de consolidação, cada sociedade, apresentará o seu plano de recuperação, sem qualquer união de ativos das sociedades pertencentes ao grupo, sendo que a medida visa, acima de tudo, a eficiência e a economia processual, veja-se [8]: “[…] A consolidação processual não passa de uma medida administrativa que visa à economia processual e à redução de custos, inclusive contribuindo para o sucesso da recuperação judicial”.
Por outro lado, a consolidação substancial é uma medida que visa unificar os ativos e passivos das sociedades empresariais que compõem determinado grupo econômico, acarretando a assunção de riscos pelos credores de outras sociedades e vice-versa, senão vejamos excerto doutrinária da mesma autora outrora citada
[9]: “todas as sociedades em recuperação se responsabilizem pelos credores e, consequentemente, todos os credores assumam os riscos do grupo como um todo e não apenas da sua devedora direta”.
Através do instituto da consolidação substancial, é possível que as sociedades do grupo apresentem um mesmo pedido de recuperação judicial, oportunidade em que serão pagos os credores de todas as sociedades, independentemente se somente uma ou outra sociedade esteja efetivamente em crise econômico-financeira.
Trata-se, todavia, de uma medida excepcional, pois acaba por trazer algumas consequências eventualmente negativas aos credores, haja vista a desnaturação dos negócios jurídicos pretéritos à recuperação judicial e a diluição do voto do credor (de modo a facilitar a aprovação do plano), conforme ressaltado pelo Desembargador Fábio Tabosa [10], da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP:
“[…] Ora, a elaboração de um único plano de recuperação judicial presta-se, em última análise, a abusos e tem o condão de gerar graves distorções no tocante à situação dos credores de alguma das sociedades recuperandas, por primeiro diluindo o peso de suas participações na composição dos quóruns de votação e prestando-se inclusive a comprometer a legitimidade das deliberações assembleares, conforme venham tomadas, e depois, no plano da renegociação objetiva das obrigações, interferindo nas condições originárias dos negócios jurídicos por eles celebrados com as devedoras independentemente da situação econômico-financeira efetivamente apresentada por cada uma delas.”
A professora Sheila C. Neder Cerezetti [11] diferencia os dois institutos, ressaltando, como já esclarecido, que a consolidação processual se trata de uma medida meramente formal, enquanto a consolidação substancial, por atingir direitos substanciais das partes, revela-se, de fato, excepcional, veja- se:
“A extensão do alcance da medida conjunta de reestruturação empresarial pode dizer respeito apenas a uma solução meramente formal de unificação de procedimentos da recuperação judicial de cada sociedade que compõe o grupo, ou pode ser mais abrangente e representar verdadeira união de ativos e passivos na busca da manutenção da empresa. O primeiro caminho, mais simples e aceito, é aqui referido como consolidação processual e tem como propósito principal facilitar a estruturação do instrumento da recuperação. O segundo, excepcional e que demanda cuidado, na medida em que atinge direito substanciais de inúmeras partes, denomina-se consolidação substancial e visa a compor direito e interesses dos envolvidos.”
Estabelecida a diferenciação e os impactos da consolidação processual e substancial, passa-se a esclarecer a nova ordem jurídica quanto aos temas, haja vista que, enfim, os institutos foram legalmente regulados, no caso, pela Lei nº 14.112/20 (nova Lei de Recuperação Judicial e Falência).
Consolidação processual e substancial na nova Lei de Recuperação Judicial e Falência
A consolidação processual foi estabelecida no artigo 69-G, da Lei nº. 14.112/2020, no seguinte sentido: “devedores que atendam aos requisitos previstos nesta Lei e que integrem grupo sob controle societário comum poderão requerer recuperação judicial sob consolidação processual”.
Como na consolidação processual se preserva a autonomia patrimonial das sociedades integrantes do grupo tem-se que: (1) cada sociedade apresentará individualmente o seu plano (artigo 69-G, §1º); (2) há completa interdependência dos devedores, inclusive de seus ativos e passivos (artigo 69-I); (3) os quóruns de deliberação serão apurados em referência aos credores de cada devedor (artigo 69, I, §3º); e (4) é possível que seja concedida recuperação judicial ou falência a cada um dos devedores (artigo 69, I, §4º), ou seja, o desfecho do processo em relação a um devedor, não impactará o do outro.
O tema da consolidação processual quase nada se alterou com a nova legislação, concluindo-se que, por segurança jurídica, meramente codificou-se o que já era de entendimento doutrinário e jurisprudencial.
Não obstante, em relação à consolidação substancial, optou-se por trazer um diferente panorama de aplicabilidade, a fim de se encerrar, pelo princípio da legalidade, as discussões quanto ao tema.
A consolidação processual nunca foi um problema, todavia a consolidação substancial era um tema que gerava extremas discussões, tais como: (1) se a consolidação processual teria como consequência automática, por si só, a consolidação substancial; e (2) se a consolidação processual deve ser objeto de decisão judicial ou deve ser submetida ao crivo dos credores, os quais, como dito, podem ser prejudicados em caso de união de ativos e passivos.
A nova lei pacificou juridicamente os temas acima, sendo esclarecido, conforme artigo 69-J, que: “O juiz poderá, de forma excepcional, independentemente da realização de assembleia geral, autorizar a consolidação substancial de ativos e passivos dos devedores integrantes do mesmo grupo econômico que estejam em recuperação judicial sob consolidação processual, apenas quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos”.
Pela leitura do artigo se constata que a decisão, agora, compete ao juiz do caso, bem como se aplica somente no caso em que houver interconexão e confusão entre ativos e passivos dos devedores.
Afastou-se, assim, qualquer discussão no sentido de que a consolidação processual gera a consolidação substancial, bem como no que se refere à forma de aplicabilidade do instituto, ou seja, por decisão judicial ou assemblear.
Importante mencionar que a nova lei trouxe, ainda, requisitos objetivos para fins de configuração da confusão patrimonial apta a consolidar, substancialmente, os passivos e ativos.
Deve haver cumulativamente a ocorrência de, no mínimo, duas das seguintes hipóteses, conforme incisos do artigo 69-L, quais sejam: (1) existência de garantias cruzadas; (2) relação de controle ou de dependência identidade total ou parcial do quadro societário; e (3) atuação conjunta no mercado entre os postulantes.
Consolidação processual e substancial: impacto aos credores
Em relação à consolidação processual, não há que se falar em prejuízo aos credores (a não ser, por óbvio, os prejuízos que já decorrem do simples pleito recuperacional da devedora). Isso porque não haverá mudança do polo subjetivo do devedor submetido aos efeitos da recuperação judicial. Como cada empresa do grupo apresentará o seu plano individualizando, possuindo dívidas e receitas próprias, haverá a preservação do polo passivo obrigacional, ou seja, o credor terá a garantia de que o devedor com quem tem relação realizará o pagamento, embora seja nos termos do plano aprovado, de modo a não se alterar, ainda, a força de voto em deliberação assemblear.
Por outro lado, se for o caso de consolidação substancial, ou seja, com a união de ativos e passivos das empresas, haverá a desnaturação da relação obrigacional existente anteriormente ao pedido de recuperação, acarretando, ademais, a diluição do peso de voto do credor.
Existirão credores de empresas eventualmente solventes e superavitárias — que, logo, não esperam um pedido de recuperação judicial do devedor —, sendo prejudicados pelo simples fato de ser aplicada a consolidação substancial em relação à empresa com quem se relaciona.
Nesse caso, como haverá a união dos ativos e dos passivos, indistintamente, o credor não mais terá a garantia de que a empresa com quem mantém vínculo obrigacional cumprirá com sua obrigação, haja vista que, agora, os seus ativos se misturarão com diversas outras sociedades, inclusive, eventualmente, empresas insolventes e sem liquidez.
Lado outro, a unificação das obrigações acarreta, em regra, a diluição do peso de voto de determinado credor. Se antes determinado credor possuía um crédito relevante em relação a uma empresa — fato que, como se sabe, lhe garante um prestigiado poder no processo recuperacional —, com a consolidação dos passivos esse voto não terá mais o mesmo peso, haja vista a elevação do valor do passivo.
Conclusão
Percebe-se, assim, uma grande evolução quanto ao tema da recuperação judicial dos grupos empresariais, bem como em relação à aplicabilidade dos institutos da consolidação processual e substancial. Atualmente, como a Lei nº 14.112/20 codificou temas antes demasiadamente discutidos na doutrina e na jurisprudência, há uma tendência de maior segurança jurídica nos pleitos recuperacional dos grupos empresarias.
Por fim, como se destacou, dentre as principais inovações, chama atenção para o fato de que o legislador optou em codificar a excepcionalidade da consolidação substancial, trazendo requisitos objetivos de aplicabilidade do instituto, inclusive pelo eventual impacto aos credores através da desnaturação da relação obrigacional existente anteriormente ao pedido recuperação judicial e pela diluição do peso de voto de determinado credor.
[1] EIZIZIK, Nelson. A Lei da S/A comentada. vol II. São Paulo:Quatier Latin, 2011, p. 217-218.
[2] REQUIÃO, Rubens. Direito Comercial. 32ed. rev. e atual por Rubens Edmundo Requião, 2 v. São Paulo: Saraina, 2015, p. 362-363.
[3] Autos nº. 2005.001.072887-7, 1ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro.
[4] MC. 20773-GO, no REsp. 1.215.503/GO, rel. ministro Marco Buzzi. Decisão monocrática que posteriormente foi confirmada no AgRg na MC 020733/GO.
[5] Autos nº 1030812-77.2015.8.26.0100, 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo/SP
[6] CEREZETTI. Sheila C. Neder. Grupos de Sociedades e Recuperação Judicial: O Indispensável encontro entre Direitos Societário, Processual e Concursal. YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti J. (Coords.). Processo Societário II: adaptado ao Novo CPC – Lei nº 13.105/2015, São Paulo : Quartier Latin, 2015.
[7] FONTANA, Maria Isabel Vergueiro de Almeida. Recuperação Judicial de Grupos de Sociedades Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Direito. São Paulo, 2016.
[8] Ibid.
[9] Ibid.
[10] TJ-SP; Agravo de Instrumento 2123667-67.2015.8.26.0000; Relator (a): Fabio Tabosa; órgão julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 16/11/2015; data de registro: 18/11/2015.
[11] CEREZETTI. Sheila C. Neder. Grupos de Sociedades e Recuperação Judicial: O Indispensável encontro entre Direitos Societário, Processual e Concursal. YARSHELL, Flávio Luiz; PEREIRA, Guilherme Setoguti
J. (Coords.). Processo Societário II: adaptado ao Novo CPC – Lei nº 13.105/2015, São Paulo : Quartier Latin, 2015, p. 749.
https://www.conjur.com.br/2022-jul-29/andrade-vieira-recuperacao-judicial-grupos-empresariais