Prestes a completar 15 anos de vigência, a Lei nº. 11.101/2005 se encontra em momento de transição. Embora tenha representado avanço em relação ao regime anterior, hoje existem dúvidas relacionadas à efetividade do procedimento recuperacional e a um eventual viés de continuidade de negócios inviáveis.
De fato, em obra por nós publicada ao final de 2019, a partir de uma avaliação estatística, constatou-se que empresas em situação financeira paupérrima ainda conseguiam aprovação de seus planos em pouco mais da metade dos casos. Conjugando isso com outros fatores qualitativos da análise de processos, denotou-se, “por parte dos credores, uma falta de perspectiva em recuperar os créditos existentes de qualquer outra maneira, levando à aprovação do plano de recuperação de empresas com histórico robusto e persistente de resultados negativos” (p. 145).
Em mais recente trabalho para discussão (working paper), novamente de maneira empírica, avaliamos, a partir de centenas de processos, a relação entre as causas concretas” (artigo 51, I) descritas nas petições iniciais de pedidos de recuperação judicial e os meios de recuperação propostos nos respectivos planos (artigo 53, I).
Os resultados também não foram animadores sob uma perspectiva dos princípios e objetivos falimentares: as responsabilidades pela origem das dificuldades financeiras costumam ser terceirizadas pela devedora (normalmente atribuindo-se o motivo a eventos externos e macroeconômicos), enquanto a solução costuma passar exclusivamente por perdas dos credores (via demissão de funcionários e concessão de prazos e descontos pelos demais credores). Tão preocupante quanto isso, empresas atuantes em setores completamente distintos, ao contratar alguns dos mesmos profissionais utilizados por outras atividades em dificuldade, apresentam as mesmas petições iniciais e planos de recuperação, de modo completamente genérico e uniformizado.
Ou seja, por mais que o processo recuperacional tenha sido imaginado para fornecer soluções, na medida do possível, individualizadas, específicas e consensuais — afinal, cada crise possui uma origem própria e, acredita-se, uma saída adequada e correspondente, que deverá ser barganhada entre devedor e credores — o que se observa na prática é uma padronização das demandas, sendo os credores postos em posição de aprovar planos pela simples descrença em alternativa viável para recebimento dos valores.
Efetivamente, conforme já expusemos neste mesmo canal, um dos maiores desafios atuais do Direito Falimentar é conjugar, de um lado, seus princípios e objetivos com, de outro, sua aplicação. Em um cenário reformista da Lei nº. 11.101/2005, qual, então, deveria ser a tônica das mudanças para um processo recuperacional mais efetivo?
Várias discussões pontuais merecem — e, por isso, atualmente recebem — a devida atenção, como, por exemplo, a posição do Fisco dentro das recuperações, as formas de financiamento da empresa em dificuldade, a especialização do juízo falimentar, entre outras.
Todas essas reformas buscam endereçar algum problema prático observado em recuperações. Contudo, adentrar em cada uma delas fugiria ao escopo desta breve nota. Aqui, o que se acredita ser relevante é sugerir uma direção das reformas, e não propriamente sua maneira de implementação. E essa direção, a nosso ver, deve passar por: I) maior atribuição de responsabilidades ao devedor; e, eventualmente, II) ao próprio juízo.
Quanto ao primeiro norte: se hoje as empresas entram em recuperação de maneira tardia, com fundamentos econômicos ruins, terceirizam a responsabilidade pelos problemas e cobram (quase exclusivamente) dos credores as soluções, deve-se trazer as recuperandas para uma posição de maior de responsabilização (accountability) dentro da relação processual.
De que forma isso poderia ser trazido à realidade? Desde maiores deveres vinculados à demonstração da viabilidade da atividade (polêmico debate já travado por meio, por exemplo, dos limites de perícias prévias) até medidas hodiernamente propostas para se evitar comportamentos oportunistas por parte das recuperandas — como impedir a distribuição de lucros durante a recuperação ou submeter a forma e quantia de remuneração dos administradores a algum crivo do Judiciário ou dos credores.
A segunda tônica, à qual os próprios autores do presente artigo ocasionalmente apresentam certa resistência pontual, é a de atribuir mais poder ao julgador dos casos recuperacionais. De certa forma, seria esse, na verdade, um complemento necessário ao primeiro direcionamento.
Por mais que o processo recuperacional seja estruturado para que o Judiciário tenha função de mero garantidor de cumprimento legal do procedimento, sendo múnus dos credores a avaliação material das propostas do plano de recuperação, a imagem que se tem atualmente é a de credores aprovando planos mais por desolação do que por crença na viabilidade da empresa em dificuldades. É necessário reequilibrar essa relação.
E, aqui, a direção por nós sugerida é contrária às flexibilizações que a jurisprudência criou em benefício de devedoras em geral, sob a égide do “princípio da preservação da empresa” (como o relaxamento dos requisitos para aplicação do cram down), e, sim, favorável à atuação que vise permitir a proteção tão somente das atividades economicamente viáveis. A maior responsabilização do Judiciário, nesse sentido, seria voltada a garantir materialmente o enforcement das previsões existentes no texto legal — e não como mera formalidade.
Por exemplo, o artigo 53, I, da Lei de Recuperação e Falência prevê que os planos de recuperação deverão conter descrição pormenorizada dos meios de recuperação a serem empregados. Entretanto, não faltam planos de caráter meramente sugestivo — com indicações de que a devedora poderá, a seu exclusivo critério, adotar determinadas medidas (sendo, logo na sequência, copiado todo o rol do artigo 50), com a ressalva, ao final, de que elas poderão ser implementadas “sem prejuízo de outras”. Não se trata de simples formalidade, que deverá ser avaliada pelos credores (desacreditados), mas, sim, de questão material a ser devidamente endereçada pela devedora e, por isso, cobrada pelo Judiciário.
Deve-se, a todo preço, evitar a pura discricionariedade judicial, especialmente em matéria recuperacional. Contudo, é preciso que o Judiciário auxilie na realização dos princípios falimentares — e isso, invariavelmente, deve envolver trazer a devedora para o centro do processo, exigindo-se dela, fielmente, um diagnóstico preciso de seus problemas e soluções correspondentes, sob pena de a recuperação judicial se manter como um procedimento padronizado, que serve a recuperar qualquer atividade, quase a qualquer custo.
https://www.conjur.com.br/2020-abr-26/mattos-proenca-padronizacao-efetividade-recuperacao-judicial