Proposto em janeiro de 2024, o PL 3/24 visa alterações na lei de recuperação judicial e falência. Aprovado em março, inclui criação do gestor fiduciário e do Plano de Falência, entre outras modificações. Elogios e críticas são pertinentes, porém seu impacto real só será conhecido com o tempo.
No dia 10/1/24, o Poder Executivo, por meio do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, propôs o PL 3/24, de relatoria da deputada Federal Danielle Dytz da Cunha, do UNIÃO – Partido União Brasil, do Estado do Rio de Janeiro.
O PL, que tramitou com urgência desde 19/3/24, de acordo com o procedimento disciplinado pelo art. 64 da CF/88, e que foi aprovado no Congresso Nacional no dia 26 /3/24, propõe alterações na lei 11.101/05, concernente aos processos judiciais de recuperação judicial e de falência de empresários e de sociedades empresárias.
Em resumo, as principais alterações propostas pelo PL são: (i) a criação do “gestor fiduciário”, (ii), especificamente no processo judicial de falência, a criação do Plano de Falência, (iii) a modificação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica contras as sociedades falidas e seus sócios e (iv) a consolidação de alguns temas que são, hoje, objeto de divergência jurisprudencial.
Ainda que não seja recomendável, neste momento, elencar quais pontos seriam definitivamente positivos ou negativos (pois apenas a prática dirá se as alterações agilizarão, ou não, os processos falimentares), é possível tecer elogios e críticas sobre as possíveis consequências do projeto, sempre com intuito construtivo e para fins de especulação teórica.
Possíveis consequências positivas
A primeira possível consequência positiva já estava prevista na redação originária do projeto apresentado pelo ministro da Fazenda. Trata-se da criação do Plano de Falência (art. 82-C), que visa replicar nas falências o procedimento consolidado nas recuperações judiciais e que vem se mostrando, dentro do possível (contexto de crise empresarial), uma estratégia que equilibra os interesses de todos os presentes no processo. O intuito principal do PL é, em síntese, transportar para os processos falimentares o Plano de Recuperação Judicial, adequando-o.
Outro ponto interessante é a criação da figura do “gestor fiduciário”. De acordo com a proposta de redação do art. 21-A da lei 11.101/05, no processo judicial de falência, o administrador judicial, nomeado pelo juiz, poderá ser substituído pelo gestor fiduciário, eleito pela Assembleia Geral de Credores (que analisará as propostas voluntariamente apresentadas pelos interessados nos autos, consoante §3º do mesmo artigo). Conforme a proposta de redação do art. 82-C da lei 11.101/05, o gestor fiduciário terá competência para praticar os atos então praticados pelo administrador judicial e, também, para instruir o procedimento de elaboração e de execução do Plano de Falência.
Na prática, a substituição do administrador judicial pelo gestor fiduciário propicia a observância dos interesses dos credores no processo judicial de falência, pois, ao contrário daquele sujeito processual judicial, este não será nomeado judicialmente, a critério do juiz, mas sim pelos credores, a critério próprio. Observa-se que a alteração, que parece irrelevante a um primeiro momento, traz como consequência a maior competitividade (e, portanto, redução de custos) para o procedimento de escolha do representante da sociedade falida. Os candidatos ao múnus de gestor fiduciário deverão convencer os credores da qualidade de seus serviços e da vantajosidade de seus preços (custo benefício), algo que não ocorre com o administrador judicial, que é nomeado unilateralmente pelo juiz (ainda que sobre a nomeação possa caber impugnações e recursos).
Contudo, deve-se observar que, como a eleição do gestor fiduciário será realizada pela maioria simples das classes de credores referidas nos art. 7º-A (referente ao Estado, representado pela Fazenda Pública) e 41 da lei 11.101/05 (referente às demais classes de credores), e como essas classes de credores votam de acordo com o voto dos credores que representam a maioria simples do crédito, há o risco de captura do gestor fiduciário por algumas classes de credores, a exemplo do Estado e das instituições financeiras, que, comumente, são proprietários da maior parte dos créditos. Critica-se, também, o fato de que, considerando a presunção de parcialidade do gestor fiduciário, ele pode ser menos disposto, se comparado ao administrador judicial, a coibir a prática de atos ilícitos pelos demais sujeitos processuais judiciais.
Destaca-se que o PL também consolidou e deixou expresso (art. 6º, 2-A e 76, §§ 3º e 4º) que todos os atos executivos (inclusive em caráter cautelar ou de urgência) direcionados ao patrimônio do recuperando ou da sociedade falida deverão ser realizados exclusivamente pelo juízo falimentar. Este trecho é uma resposta necessária aos juízes que, mesmo informados da recuperação ou da falência, insistiam em ordenar arrestos, penhoras ou outras medidas constritivas em ações de conhecimento ajuizadas por credores que tentam burlar a ordem de preferência legal.
Na mesma toada, o PL centralizou no juízo falimentar a competência para julgar e executar todos os incidentes de desconsideração da personalidade jurídica contra a sociedade falida, bem como aos atos executivos a serem praticados contra o patrimônio dos sócios e administradores (art. 82-A, §§ 3º e 4º), o que pode garantir maior segurança jurídica aos réus destes incidentes, evitando inúmeras decisões conflitantes sobre o tema (em cada ação de conhecimento ajuizada contra a falida).
O PL pretende deixar mais transparente a redação do artigo 48, II, da lei 11.101/05. Atualmente, a norma diz que o prazo entre a concessão de uma recuperação judicial e a concessão de nova deve ser de, no mínimo, 5 anos. O PL altera o prazo para 2 anos, contado do encerramento do procedimento recuperacional, e não mais da concessão judicial, ressalvando os casos em que a recuperanda tenha conseguido, na recuperação anterior, satisfazer a integralidade dos créditos (hipótese em que nova concessão será possível, independentemente do intervalo temporal). Entendemos que a proposta pode sofrer tanto elogios (pois impede que as empresas operem indefinidamente em recuperação judicial, em detrimento do interesse dos credores e apesar de se mostrarem inviáveis economicamente ou mal administradas) como críticas (pois o prazo entre uma recuperação e outra poderia acabar violando, em alguns casos concretos, o princípio da preservação da empresa).
Por sua vez, a alteração no §3º do art. 49 pode vir a garantir maior segurança aos detentores dos créditos cedidos fiduciariamente (caso em que o “credor” é efetivamente proprietário dos bens cedidos). Em alguns casos, o Poder Judiciário vinha negando aos detentores de “recebíveis” o seu direito de executar o contrato firmado com recuperando e sacar o dinheiro (geralmente depositado em conta vinculada), sob o argumento de que estes seriam “essenciais à atividade empresarial” do recuperando1. Caso aprovado, o PL excluirá expressamente o caráter essencial de “créditos e dinheiro”.
Possíveis consequências negativas
Também existem previsões normativas no PL que tendem a atrair consequências negativas ou criar discussões de difícil resolução. Observa-se, por exemplo, que apenas os credores que representam ao menos 10% dos créditos podem impugnar o Plano de Falência, conforme preconiza a proposta de redação do art. 82-D da lei 11.101/05. Se aplicado literalmente, o comando parece duplamente inconstitucional: primeiro, porque trata desigualmente (discrimina) os credores de menor porte (em possível afronta ao art. 5º, caput, da CF/88) e, segundo, porque afasta destes mesmos credores o direito de impugnar o plano que se lhes aplicará, em clara afronta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88). A leitura constitucional do comando, acreditamos, seria a de que a vedação de impugnação se limita aos aspectos comerciais, gerenciais e de liquidação da falida, desde que não abusivos e em consonância com o mercado, permitido o peticionamento ao juízo falimentar por qualquer credor em caso de apresentação de Plano ilegal (material ou formalmente).
Para além dessas duas grandes inovações propostas pelo PL, destaca-se, também, a previsão de que o Estado deverá indicar, no início do processo judicial (quando seus créditos não forem definitivos), as condições de realização de transação tributária e, então, não será intimado para participar de eventuais deliberações na Assembleia Geral de Credores, conforme a proposta de redação dos art. 7º-A e 82-B, § 3º, da lei 11.101/05, o que deve tornar o processo judicial mais célere.
Pode-se também destacar que o PL, além de vedar a assunção simultânea de mais de 4 (quatro) recuperações judiciais por um profissional na condição de administrador Judicial, veda que o administrador judicial do processo judicial de recuperação judicial seja, também, o administrador judicial ou o gestor fiduciário do processo judicial de falência, de acordo com a proposta de redação do art. 21, §§ 4.º e 10.º, da lei 11.101/05, o que pode comprometer o juízo do administrador judicial acerca da convolação da recuperação judicial em falência.
Além disso, a previsão legal acaba impedindo atuações concomitantes de administradores judiciais sem conferir qualquer tipo de preocupação com a existência de profissionais suficientes para suprir a demanda das empresas em crise. Discordamos da alteração, pois, apesar de ser medida que pretende conter eventuais ganhos astronômicos dos administradores (cumulativamente), é preciso ter em conta que os profissionais estão prestando um serviço e a remuneração recebida não é um “favor” ou uma “liberalidade” do Poder Público, personificado na figura do juiz.
Semelhante problema pode decorrer do art. 24, § 1º e seguintes, modificado pelo PL a fim de densificar (de forma escalonada) o limite da remuneração devida aos administradores judiciais. Regra geral, apesar de não ser ilegal ou inconstitucional, o tabelamento de preços não é um instrumento econômico recomendável de ser utilizado pela melhor técnica legislativa, uma vez que o sistema de preços mercadológicos deve retroalimentar-se desimpedidamente para que as operações econômicas sejam eficientes e, no caso das falências e recuperações, pode acabar afastando profissionais que fariam um bom trabalho, mas que não se sentem suficientemente remunerados pelo preço predefinido pela lei.
Ainda que o tabelamento seja fixado em valores altos, a impossibilidade de prever todas as situações fáticas futuras é uma limitação inerente às normas jurídicas. Não duvidamos que, em algum caso concreto mais complexo e específico, o juiz sinta dificuldades em encontrar um administrador judicial experiente que aceite se submeter ao teto legal, o que acabará por inviabilizar o bom gerenciamento da empresa em crise ou da sociedade falida.
O projeto estendeu aos administradores judiciais, no caso de falência, a observância aos deveres e responsabilidades previstos para os administradores de sociedades anônimas (dever de diligência, lealdade, informar e abstenção em conflito de interesses), ainda que a empresa falida não seja uma S/A (artigo 22, III, “t”). A mudança é curiosa, pois atrai o regime de responsabilidade das companhias e todas as dúvidas que pairam sobre ele, inclusive sobre a sua adequação à falência (aplica-se a business judgment rule do art. 158, caput e 159, §6º da LSA? O administrador judicial responde objetiva ou subjetivamente no caso do art. 158, II, da LSA? Aplica-se o procedimento do artigo 159 para ajuizamento de ações judiciais contra o administrador judicial, ou seja: o comitê de credores “substitui” a assembleia geral?). Tais pontos ainda precisam ser melhor discutidos e avaliados.
Outro tema que merece ser melhor debatido (e neste ponto não se está fazendo críticas ou elogios ao projeto) é a limitação de alienação de créditos devidos pelo Poder Público à sociedade falida (o que alcança precatórios e debêntures emitidos por sociedades de economia mista, por exemplo) previsto no art. 82-G do PL. Se por um lado a norma impede que o comprador dos créditos, geralmentes os mesmos bancos que são os credores da falida, adquira os precatórios com deságios altos, beneficiando-se da iliquidez da falida, acaba também impedindo que certos créditos (principalmente aqueles com vencimento prolongado) sejam pagos à falida, alargando por vários anos o processo falimentar sem que isso possa, de fato, beneficiar os credores (não necessariamente estes créditos devidos pelo Poder Público são sempre altos e relevantes).
As mesmas reflexões se aplicam às limitações previstas pelo artigo 82-H, que veda a alienação, com deságio, de créditos devidos à sociedade falida discutidos em processos judiciais. O risco aqui é que os créditos não sejam nunca liquidados pelos devedores daqueles processos judiciais e, se o administrador/gestor encontrar algum interessado em sua aquisição, terá dificuldades relevantes para realizar a venda com deságio, pois nenhum terceiro estará em interessado em comprar um crédito sem precificar o risco do não recebimento efetivo da quantia contida no título judicial. Em razão da dificuldade material e temporal existente nas fases de execução de sentença no Brasil, é provável que estes créditos, com a atual previsão do PL, atrasem os processos falimentares por anos.
Conclusão
Em suma, pode-se afirmar que a concepção do gestor fiduciário e do Plano de Falência tornam os processos judiciais de recuperação judicial e de falência mais sofisticados, mas, ao mesmo tempo, deve-se rememorar que a lei 11.101/05 foi alterada recentemente pela lei 14.112/20, de modo que os operadores tanto da Economia quanto do Direito ainda estão compreendendo, na prática, todas aquelas inovações. Por isso, a alteração da lei 11.101/05, se realizada, deve ser conservadora, de modo que, antes de aprovado o Projeto de Lei, as implicações práticas sejam assimiladas pelos destinatários das normas jurídicas. Dito isso, as vantagens decorrentes do PL não justificam o trâmite exasperado, que implicará a recepção dessas vantagens em conjunto com inúmeras desvantagens prejudiciais à recuperação judicial e à falência no Brasil.
Por exemplo: Súmula 62 do TJSP – Na recuperação judicial, é inadmissível a liberação de travas bancárias com penhor de recebíveis e, em consequência, o valor recebido em pagamento das garantias deve permanecer em conta vinculada durante o período de suspensão previsto no § 4º do art. 6º da referida lei.