Recentemente, um cliente em recuperação judicial passou por uma situação talvez inusitada e que o colocou em uma posição muito delicada: a revogação do stay period após sua segunda concessão pelo juízo recuperacional, antes de ter sido realizada a assembleia geral de credores.
E por que digo inusitada? É sabido que o stay period foi criado pelo legislador para que, durante a fase deliberativa da recuperação judicial, o devedor fique protegido de execuções individuais, de modo a negociar com seus credores o plano de recuperação apresentado visando sua aprovação.
E por que o colocou em uma situação delicada? Até o momento em que houve a revogação da prorrogação do stay period em segunda instância, o juízo recuperacional ainda não havia convocado a assembleia geral de credores, que, em razão da apresentação de oposição ao plano, é obrigatória para sua deliberação.
Algumas informações são necessárias para melhor compreensão do caso: o processo está tramitando por aproximadamente 16 meses em uma comarca do interior do Estado de Goiás, onde não há juízes titulares há muito tempo. Desde o protocolo, o processo já passou por três magistrados substitutos e dois desembargadores preventos. Como é de conhecimento público, não temos varas especializadas no Estado.
Desde a revogação do stay period, a devedora vem sofrendo diversas buscas e apreensões de bens de capital essenciais à sua atividade, execuções individuais, e o pior: os acordos com credores sujeitos ou não à recuperação judicial, que estavam prestes a serem concluídos, retornaram à estaca zero. A mudança de cenário colocou os credores em uma situação privilegiada de negociar individualmente, transformando o processo de recuperação judicial em uma corrida para ver quem terá seus créditos satisfeitos mais rapidamente, o que é totalmente contrário ao objetivo do processo recuperacional.
Para agravar a situação, a distribuição dos processos, apresentação de recursos e defesas em matéria de recuperação judicial virou uma verdadeira loteria. Diante da assimetria informacional sobre o tema, casos análogos possuem decisões totalmente diferentes, o que traz muita insegurança jurídica.
Temos visto diversos casos em que a prorrogação do stay period pela segunda vez está sendo concedida e também temos visto o indeferimento da prorrogação em casos em que a não deliberação do plano de recuperação foi por razoes alheias a conduta e vontade das empresas recuperandas.
Portanto, a devedora/recuperanda está sendo penalizada pela morosidade da justiça e pela falta de especialização do judiciário, o que leva à não compreensão clara dos institutos da recuperação judicial e seus objetivos e seu processo recuperacional corre risco de insucesso.
O stay period, instituto de inspiração no modelo norte-americano de insolvência e que adquire especial importância nos casos de recuperação judicial de empresas, na medida em que visa garantir à devedora um prazo para que consiga negociar um plano de recuperação com os seus credores, sem a pressão individual dos credores sobre o seu patrimônio, garantindo-se a neutralização dos chamados credores hold outs, cuja atuação egoísta colocaria a perder todo o esforço de negociação coletiva.
Prevê o §4º do art. 6º da Lei nº 11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência): “Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não tenha concorrido para a superação do lapso temporal.”
Antes da reforma da lei em 2020, com o advento da Lei nº 14.112, o mesmo dispositivo estabelecia que o prazo de 180 dias, conhecido na doutrina como stay period, era improrrogável, o que na prática acabou sendo flexibilizado. O referido prazo foi considerado exíguo para que todas as negociações fossem concluídas até a aprovação ou rejeição do plano de recuperação apresentado.
Não obstante a previsão de improrrogabilidade em questão, a jurisprudência já havia se consolidado em sentido contrário, possibilitando a prorrogação do stay period inclusive em mais de uma oportunidade, considerando que o mero decurso do prazo de 180 dias não seria o bastante para, isoladamente, autorizar a retomada das demandas movidas contra o devedor, uma vez que a suspensão também encontra fundamento nos artigos 47 e 49 da Lei 11.101/05, cujo objetivo é garantir a preservação da empresa e a manutenção dos bens de capital essenciais à atividade na posse da recuperanda.
Segundo dados da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), o prazo médio de duração do stay period nos processos de recuperação judicial de São Paulo, estado onde tramita o maior volume de processos dessa natureza antes da reforma, era de 540 dias. O prazo mediano (descontando as desproporções) foi de 386 dias, para conseguir a aprovação dos credores, superando os 180 dias que a lei fixa para conclusão das negociações.
É importante destacar que o TJSP conta com varas especializadas na capital e varas regionais no interior, além de câmaras especializadas em direito empresarial, o que melhora significativamente a prestação jurisdicional, a efetividade do processo e consequentemente a duração dos processos.
O legislador, durante a reforma da lei, resolveu ampliar o prazo do stay period em casos excepcionais por uma única vez para que as negociações e a própria duração do processo de recuperação judicial não se prolonguem por muito tempo, buscando mais rigidez na prorrogação do mencionado prazo.
Sou contra o uso desenfreado do instituto do stay period, quando utilizado de forma inadequada, porque pode prejudicar credores, a própria empresa devedora e o sistema jurídico como um todo. Empresas em recuperação não podem desvirtuar o instituto para ganhar tempo, o que pode causar a adoção de medidas necessárias de reestruturação ou buscando apenas postergar a falência inevitável.
Medidas podem ser adotadas para evitar o uso indevido do stay period; fiscalização e supervisão judicial rigorosa; critérios claros para prorrogação; participação ativa dos credores; educação e capacitação do judiciário e transparência e divulgação de informações.
Ocorre que nossa legislação recuperacional, em seu mundo ideal, pressupôs que o processo deveria ter prazo máximo de duração de 30 meses, que a assembleia geral de credores seria realizada em 150 dias e que o stay period teria o prazo de 180 dias. Isso pressupõe que o Judiciário funcione perfeitamente, com quantidade adequada de juízes e servidores qualificados e especializados nas matérias, e que todos os administradores judiciais tenham capacidade e conhecimento técnico adequado, sem grandes intempéries e obstáculos.
No mundo real, em muitos estados não há justiça especializada em matéria recuperacional; o Judiciário não conta com todo o aparelhamento adequado para o desenvolvimento de suas atividades, desde estruturas físicas, operacionais até material humano (servidores e magistrados). Em muitas comarcas, nunca tramitou um processo dessa natureza e, quando ocorre a primeira distribuição, é uma grande novidade. O usuário do Judiciário, no caso da recuperação judicial, a empresa ou empresário devedor, acaba sofrendo pelo despreparo. Os processos se tornam verdadeiras cobaias nas mãos dessas pessoas e ainda vemos muitos administradores judiciais sendo nomeados sem a devida experiência e qualificação, em razão do critério de confiança previsto na lei, muitas vezes confundido por amizade.
Uma importante ferramenta para oferecer um ambiente menos hostil e mais propício para as negociações de devedores em recuperação judicial, o stay period, muitas vezes é mal aplicado pelo Judiciário, que frequentemente não sabe para que serve e aplica seguindo os rigores da lei.
Por isso, o julgador deve ter a sensibilidade de não apenas analisar a letra fria da lei, mas considerar todo o contexto e o caso concreto, a finalidade da norma, sob pena de impor uma punição à devedora/recuperanda da qual ela não tem culpa, prejudicando todo o processo recuperacional.
A utilização da hermenêutica jurídica e dos princípios muitas vezes é deixada de lado por nossos julgadores, ambas são ferramentas essenciais para a análise e aplicação das normas jurídicas, garantindo que o direito seja aplicado de maneira justa, coerente e eficaz.
No referido caso, era recomendável que os doutos magistrados utilizassem métodos de interpretação sistemática e teleológica, ou seja, análise do contexto normativo como um todo e a busca pela finalidade da norma, além de princípios da recuperação judicial como o par conditio creditorum, da preservação da empresa, da efetividade e da boa-fé, e não somente a literalidade da lei.
Dessa forma, defendo que o stay period deve ser prorrogado mais de uma vez, se necessário, sendo recomendável sua prorrogação até a realização da assembleia geral de credores ou a fixação de prazo para apresentação de termo de adesão que substitua a AGC, devendo o magistrado analisar as particularidades do caso concreto.
Filipe Denki é advogado, sócio do Lara Martins Advogados. Mestrando em Direito – Núcleo de Direito Comercial na PUC/SP. Formação Executiva em Turnaround Management pela FGV/SP. Especialista em Direito e Reestruturação Empresarial.