O processo de recuperação judicial, não obstante seu elevado propósito apontado no artigo 47 da lei, não alcança todas as dívidas da empresa, o que representa, no sentir de muitos, sério entrave à efetiva reestruturação das dívidas.
Com efeito, a lei exclui certos créditos do processo de recuperação judicial. Em linhas gerais, são os créditos titularizados por instituições financeiras (art. 49, §§ 3º e 4º da lei 11.101/05, sobre os quais não discorreremos) e pelo Poder Público.
Assim como nem todos os créditos de instituições financeiras estão excluídos do processo de recuperação judicial, nem todos os créditos titularizados pelo Poder Público estão afastados desse processo.
Nesta coluna, pretendemos sustentar que somente o crédito tributário titularizado pelo Estado está excluído do processo de recuperação judicial. De conseguinte, outros créditos, como as multas, principalmente, submetem-se ao processo de recuperação judicial. Trataremos somente da submissão da multa administrativa ao processo de recuperação judicial, sem ferir outros temas, igualmente importantes.
O ponto de partida é o Código Tributário Nacional. Segundo o artigo 187, “a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento”. A norma exclui, do processo de recuperação judicial, somente o crédito tributário; não há referência à dívida ativa tributária. Essa regra do artigo 187 do CTN prefere à regra prevista no artigo 49 da lei 11.101/05, segundo a qual “estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”, dada a posição especial conferida à lei complementar (sem ingressar em pormenor acerca desse aspecto) em nosso sistema jurídico. A não ser assim, o artigo 49 teria derrogado o artigo 187 do CTN.
A Lei 11.101/05 confirma essa regra, senão vejamos. O artigo 6º, §7º, está assim redigido: “As execuções de natureza fiscalnão são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica”.
A natural interpretação a ser extraída do dispositivo é a de que a execução fiscal em referência é aquela que veicula a cobrança de tributo; por isso a expressa referência, no texto legal, e não poderia ser diferente, ao Código Tributário Nacional, Código esse que só cuida de tributos.
Outro dispositivo da lei 11.101/05 segue na mesma linha. O controvertido artigo 57 diz que “Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos do arts. 151, 205, 206 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional”.
Justamente porque o crédito tributário não é submetido ao processo de recuperação judicial, a apresentação de certidão é o meio concebido pela lei (e não se entra no mérito do acerto ou desacerto dessa fórmula) para a satisfação do crédito decorrente do inadimplemento de impostos; sem que exista qualquer exigência em relação aos demais créditos titularizados pela Fazenda Pública, como as multas, pois passíveis de submissão ao processo de recuperação judicial.
Quando se editou a lei 11.101/05 também se alterou o Código Tributário Nacional. Na sempre intrincada disciplina dos créditos sujeitos ou não sujeitos, tinha-se consciência de que se disciplinava somente o crédito tributário. Outra confirmação dessa posição adotada pelo legislador vem do art. 191-A do Código Tributário Nacional, ao estatuir que “A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei”. O artigo 57 guarda pertinência com esse artigo 191-A, que só fala em quitação de todos “os tributos”.
Portanto, não há necessidade de se apresentar certidão de quitação de multas punitivas impostas pela Administração Pública. Nem o CTN nem a lei 11.101/05 fazem essa exigência.
Não é pela falta de exigência expressa de certidão que o crédito pecuniário decorrente de multa imposta e não paga submete-se ao processo de recuperação. É porque a exclusão só se refere ao crédito tributário e, portanto, remanesce, para incidir e governar a espécie, o artigo 49, “caput”, da lei 11.101/05; é por força dessa norma que as multas se submetem ao processo de recuperação.
Parece bastante claro que o crédito decorrente de multa se submete ao processo de recuperação, à luz das normas ora transcritas, que não deixam margem a dúvida interpretativa. E o artigo 68 da lei 11.101/05, ao se referir a parcelamento “nos termos de legislação específica”, também se refere ao Código Tributário Nacional, a confirmar, mais uma vez, a coerência do legislador, sempre preocupado com o crédito tributário, e mostrando notável consciência de que outros créditos públicos se submetem ao processo de recuperação judicial.
Todavia, não se pode esquecer do artigo 29 da lei 6.830/80, e que pode atrapalhar o intérprete menos avisado. Referido dispositivo da lei de execução fiscal proclama o seguinte: “A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento”. Esse dispositivo deve ser interpretado em consonância com as alterações implementadas no Código Tributário Nacional e observar a legislação superveniente, isto é, a lei 11.101/05. A própria Fazenda Pública sabe disso, pois é corriqueira a habilitação em falência apesar da assegurada não sujeição a concurso de credores.
O dispositivo fala em dívida ativa, que, pela legislação (art. 39 da lei 4.320/64, que estatui normas gerais de direito financeiro), é classificada em dívida ativa tributária e dívida ativa não tributária (assim também o art. 2º da lei 6.830/80). A multa, por expressa previsão legal, integra a chamada dívida ativa não tributária. Também o direito de crédito decorrente de indenização em favor do Estado é incluído na dívida ativa não tributária. Por exemplo. O caminhão de uma transportadora colide contra uma ponte municipal e lhe causa danos. O Município pode acionar a empresa causadora do acidente; ou obter o valor da indenização por acordo ou outro meio administrativo. O seu direito de crédito, que não é tributário, evidentemente, na eventual falência da transportadora, será crédito quirografário, e na recuperação judicial, será crédito submetido a esse processo, o que é incontroverso. O fato de tal verba integrar, eventualmente, a chamada dívida ativa, nada lhe acrescenta de especial.
É preciso verificar, portanto, a natureza do crédito titularizado pelo Estado, com a insistência de que somente o crédito tributário está expressamente excluído do processo de recuperação judicial. É a natureza e não a pessoa do credor que deve ser considerada para se saber da submissão ou não do crédito. Com isso, avulta dizer que a locução dívida ativa não tem relevância para a conclusão que se pretende estabelecer.
A dívida ativa, que abrange tanto o crédito tributário como o não tributário, é fruto de atividade administrativa de controle da administração pública. A inscrição na dívida ativa é atividade interna da Fazenda Pública, e tem a finalidade de controle interno de legalidade, que culmina na formação de um estoque de dívida cobrável em juízo, pelo rito da execução fiscal. Dívida ativa é expressão da quantidade de crédito identificada pela Fazenda Pública sob um procedimento próprio; dívida ativa, locução que identifica a quantidade de crédito que passou pela inscrição, não tem o condão de, por si só, revestir os créditos (inscritos) de prerrogativas excepcionais.
Essa expressão – dívida ativa – relevante no âmbito da administração pública, não assume nenhum significado prático no âmbito dos processos de insolvência do devedor. Aliás, a jurisprudência dispensa a certidão de dívida ativa para fins de habilitação do crédito público nos processos de insolvência (STJ, RESP 1591141). É o crédito tributário, e não o produto de um procedimento administrativo que culmina na formação da dívida ativa, que conta com privilégio de natureza substancial.
Pode baralhar, ainda, a interpretação, o uso do adjetivo fiscal – que aparece tanto no artigo 29 da Lei de Execução Fiscal, como no §7º do art. 6º da lei 11.101/05 (“execuções de natureza fiscal”).
Todavia, como bem advertiu Milton Flacks, “a locução crédito fiscal, quando utilizada nos textos legais, não tem sentido unívoco, tanto podendo significar débito de origem tributária, como débito de um modo geral, para com o poder público, devendo o intérprete se socorrer do contexto onde se encontra inserida” (sem grifo no original). Fisco tanto pode ser a pessoa jurídica de direito público como o crédito tributário ou mesmo o estado fiscalmente considerado.
Para que se tenha a necessária harmonização entre o CTN e a LEF, é preciso entender que não é sujeita a concurso “a cobrança judicial da dívida ativa tributária…”, pois a locução dívida ativa nada tem de esclarecedora em termos de direito material. E essa harmonização já existe entre o CTN e a lei 11.101/05, pois o artigo 6º, §7º, da Lei de Recuperação e Falência é claramente endereçado às execuções fiscais destinadas à cobrança de tributo, que não são suspensas. Uma lei de ritos, como a lei de execução fiscal, não se sobrepõe à superveniente lei de reestruturação de dívidas de empresas, que, em relação ao crédito público, conta com disciplina própria.
Por elementar interpretação a contrário, que se afeiçoa, por sua vez, com o comando oriundo da Lei Complementar que é o Código Tributário Nacional, suspendem-se as execuções fiscais destinadas à cobrança da dívida ativa não tributária. E a razão da suspensão é uma só: a dívida ativa não tributária submete-se ao processo de recuperação judicial.
É importante considerar, neste ponto, que o instrumento utilizado pela Fazenda Pública para cobrar, em juízo, o seu crédito, que é a execução fiscal, mera execução por quantia certa contra devedor solvente com algumas particularidades procedimentais, não é o fator estruturante de sua posição jurídica. A ferramenta processual – execução fiscal – nada diz sobre a situação do crédito público na recuperação judicial.
Não é à toa que a jurisprudência vai reconhecendo a submissão do crédito não tributário da Fazenda Pública ao processo de recuperação judicial. O Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu a submissão de multa administrativa, por descumprimento da legislação sanitária, ao processo de recuperação judicial.
Veja-se o seguinte precedente da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 26/8/2015, rel. Des. Francisco Loureiro:
O crédito perseguido pela Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto tem natureza de multa administrativa decorrente de auto de infração da vigilância sanitária, que resultou na aplicação de penalidade por descumprimento de normas de boas práticas na manipulação e comercialização de alimentos (fl. 201).
Em outras palavras, trata-se de multa de natureza administrativa decorrente do exercício do poder de polícia.
(…)
Como se sabe, nos termos do art. 39, § 2.º da lei 4.320/1964, os créditos inscritos em dívida ativa podem ser tributários ou não.
Os créditos tributários constituem a Dívida Ativa Tributária e abrangem os tributos, adicionais e multas. Os créditos que não sejam tributários formam a Dívida Ativa não Tributária:
“Art. 39. Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.
(…)
Desse modo, inaplicável a restrição imposta pelo artigo 187 do CTN, diante da natureza não-tributário do crédito perseguido:
“Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento”.
Nessa linha de raciocínio, e considerando que a natureza do crédito sujeita-se à recuperação judicial, nos termos do artigo 49 da lei 11.101/2005, não se enquadra o caso em tela na exceção prevista nos parágrafos 3º e 4º desse mesmo artigo”.
Foi decisiva, para a conclusão do v. acórdão, a natureza do crédito, que é o critério necessário e suficiente para bom esclarecimento desse ponto. No mesmo sentido, e pelo mesmo relator, com o mesmo fundamento, o AI 2207236-63.2015.8.26.0000, j. 10/12/2015, com a seguinte ementa:
RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Indeferimento de pedido para que os créditos decorrentes das multas administrativas sejam habilitados no processo de recuperação. Multa administrativa aplicada pelo PROCON. Natureza não-tributária. Inteligência do artigo 49 da Lei n. 11.101/05. Inaplicabilidade da restrição do artigo 187 do CTN. Possibilidade de prosseguimento da recuperação com a habilitação dos créditos do PROCON. Recurso provido.
As proclamadas garantias e privilégios do crédito tributário, que procuram assegurar a sua satisfação, não têm o condão de alterar a natureza jurídica do crédito público. É o próprio Código Tributário Nacional que assim estatui, conforme artigo 183, verbis:
“A natureza das garantias atribuídas ao crédito tributário não altera a natureza deste nem a da obrigação tributária a que corresponda“.
A natureza jurídica de cada crédito público não é alterada em decorrência da vantagem processual que a lei assegura ao ente público. O precedente acima referido, que admite a submissão do crédito não tributário ao processo de recuperação judicial, segue exatamente o critério preconizado pelo Código Tributário Nacional, de que a natureza jurídica do crédito é inalterável.
Ainda que com argumentação distinta, mas em essência idêntica, e igualmente correta, isto é, levando em consideração a natureza do crédito, a partir do exame do artigo 83, VII, da lei 11.101/05, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, no dia 17/2/2016, por meio da 2ª Câmara Reservada de Falências e Recuperações, no julgamento do AI 2047000-40.2015.8.26.0000, relatoria do Des. Ricardo Negrão, assim ementado:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – Recuperação Judicial – Multa administrativa – Decisão que classifica o crédito como extraconcursal – Pretensão das recuperandas à sujeição a recuperação judicial – Cabimento (LREF, art. 83, VII) – Decisão singular reformada – Agravo provido neste ponto.
AGRAVO DE INSTRUMENTO – Recuperação Judicial – Multa administrativa – Decisão que classifica o crédito como extraconcursal – Divergência quanto aos valores – Ausência de análise no Juízo Singular – Determinação de verificação na origem para evitar supressão de instância.
Nessa decisão, a Colenda Câmara identificou, por meio do artigo 83, VII, a natureza do crédito relativo a multa titularizada pelo ente público, e, então, reconheceu a submissão ao processo de recuperação judicial.
Conclui-se que a jurisprudência, corretamente, orienta-se no sentido de acolher créditos titularizados pelo Estado e que não ostentam natureza tributária. Como se sabe, o Poder Público Federal, por seus órgãos fazendários, participou exaustivamente da elaboração da lei 11.101/05, e, conscientemente, deixou de fora da recuperação judicial os créditos relativos aos tributos. Com isso, fez submeter, com clareza, as multas administrativas ao processo de recuperação judicial, pois a modificação no Código Tributário Nacional, para adequá-lo à estrutura concebida pela Lei de Recuperação e Falências, revela a clara opção do legislador. A lei de ritos da execução – fiscal – não tem o condão de alterar essa clara vontade do legislador, expressa em textos claros (LFR e CTN).
Embora possa parecer uma pálida contribuição, é o modo pelo qual o Poder Público colabora com a empresa em crise.
https://m.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/276553/credito-publico-na-recuperacao-judicial