Recentemente, no VI Congresso Brasileiro de Direito de Empresa, organizado pelo Instituto Brasileiro do Direito de Empresa, no qual eu tive a grata felicidade de tecer considerações sobre questões de ordem pública e o direito das empresas em crise (que será abordado em outro artigo), escutei do professor Cássio Cavali que, embora o Brasil tenha criado a lei 11.101/05 com franca inspiração no US Bankruptcy Code, nós devemos achar soluções para os problemas do nosso sistema que tenham compatibilidade com nossa realidade.
Nada mais certo. É necessário identificar a realidade econômica nacional bem como do funcionamento do sistema de justiça brasileiro, a fim de que possamos refletir sobre as melhores alternativas de aprimoramento do nosso sistema de insolvência, ao invés de, simplesmente, importar modelos estrangeiros que funcionam bem nos países respectivos, mas que não teriam a mesma eficácia dada a dinâmica das relações internas.
De fato, talvez o melhor caminho seja importar o pragmatismo com o qual os norte-americanos buscam solucionar os problemas de insolvência, para buscarmos soluções concretas no Brasil, mediante a aplicação da análise econômica do direito aos processos de insolvência, com avaliação de alternativas e consequências, não nos circunscrevendo a aplicar o direito mediante mera aplicação de retórica deontológica como fazemos atualmente.
Malgrado tenhamos melhorado muito a legislação de insolvência brasileira, através da reforma advinda da lei 14.112/20, vejo que existem dois problemas estruturais que impedem melhor eficácia do instituto da recuperação judicial, e que estão de certa forma entrelaçados.
O primeiro deles é a classificação estática das classes de credores. Diferentemente do sistema norte-americano, no Brasil não é permitida a criação de classes de credores conforme a homogeneidade de interesses, o que certamente ajudaria na construção de um plano mais realista e que melhor atenderia os interesses dos credores e do mercado.1
Ao se permitir maior flexibilização na construção das classes de credores, além de haver melhor aproximação da solução proposta pela recuperação judicial com a realidade da empresa e de seus stakeholders, isso também ajudaria a acomodar e resolver outro problema estrutural, consistente na existência de credores hold out, que estão presentes nos créditos financeiros e nos créditos fiscais.
Ainda que não tenhamos dados específicos, ouso fazer uma afirmação empírica, diante dos meus mais de oito anos de experiência como juiz de insolvência: muitos dos litígios existentes no Judiciário brasileiro envolvendo recuperação judicial são resultados dessas falhas estruturais. Ou seja, além de obstaculizar a eficiência do instituto, ainda intensificam a judicialização e o consumo de inúmeros recursos públicos para sua análise.
De toda forma, voltando ao objeto do artigo, o crédito fiscal, que está “fora da recuperação judicial” (ou seja, o fisco seria um credor hold out), passados 20 anos da lei 11.101/05, ainda não recebeu um tratamento adequado que pudesse balancear o interesse da recuperação do crédito fiscal sem comprometer o direito de se buscar o soerguimento da empresa. Como será visto, antes da lei 14.112, o crédito fiscal não recebia um tratamento adequado, sendo deixado de lado. Agora, reconhecida a importância do seu tratamento, os contornos jurisprudenciais atuais podem comprometer o resultado da recuperação das empresas.
Com o intuito de proporcionar adequado tratamento para o crédito fiscal relativo à empresa que buscasse a recuperação judicial, a lei 11.101/05 determina (dispositivo que se mantém na sua redação original até hoje) a apresentação de certidões negativas de débitos tributários, facultando-se à Fazendas Públicas a concessão de parcelamento neste contexto da empresa em crise, segundo o art. 68 da referida lei (que também mantém sua redação original).
O que ocorreu, no caso concreto, foi a jurisprudência dispensando completamente a apresentação de tais certidões, pela inexistência de previsão legislativa de parcelamento de débitos tributários para empresas em recuperação judicial, nas esferas Federal, estadual e municipal, à época.
Posteriormente, com a entrada em vigor da lei 13.043/14, alterou-se a lei 10.522/02, para introduzir em tal normativo o art. 10-A, assim disposto:
Art. 43. A Lei no 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 10-A:
Todavia, a legislação de âmbito Federal dispensava um tratamento muito rigoroso para as empresas que já estavam em crise econômico-financeira, como pode ser visto, por exemplo, no parágrafo 2º do art. 10-A, que determinava a necessidade de desistência de eventuais discussões judiciais ou administrativas que envolvessem a discussão da exação de determinados tributos, obrigação incompatível com a inafastabilidade da jurisdição, direito fundamental insculpido no inciso XXXV do art. 5º da CF.
Ora, não era minimamente razoável exigir a desistência do exercício de um direito, para o exercício de outros que não se mostrassem incompatíveis com ele. Ademais, incabível o cerceamento do direito do contribuinte ou responsável tributário em discutir eventuais exações exacerbadas ou incabíveis, para que pudessem ter acesso a parcelamento de seus débitos, o que poderia configurar meio indireto e ilícito de cobrança de crédito tributário.
Naquele contexto, qualquer forma de cobrança que obstasse o direito de acesso à jurisdição era repelido pela jurisprudência pátria com veemência. Um exemplo ilustrativo desse entendimento podia (e pode) ser visualizado no verbete vinculante de 21 do STF, verbis: É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo.
O fundamento do entendimento sumulado pode ser muito bem explicado no julgamento da ADIn 1976, da relatoria do ministro Joaquim Barbosa, no qual assim se dispôs:
“Ementa: (…) A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos como condição de admissibilidade de recurso administrativo constitui obstáculo sério (e intransponível, para consideráveis parcelas da população) ao exercício do direito de petição (CF, art. 5º, XXXIV), além de caracterizar ofensa ao princípio do contraditório (CF, art. 5º, LV). A exigência de depósito ou arrolamento prévio de bens e direitos pode converter-se, na prática, em determinadas situações, em supressão do direito de recorrer, constituindo-se, assim, em nítida violação ao princípio da proporcionalidade. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 32 da MP 1699-41 – posteriormente convertida na Lei 70.235/72.” (ADI 1976, Relator Ministro Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, 28.3.2007, DJ de 18.5.2007)
Desse modo, a jurisprudência do STJ continuou no caminho da dispensa da apresentação da CND para fins de concessão da recuperação judicial. Um exemplo de muitos precedentes se encontra a seguir:
CIVIL. EMPRESARIAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CERTIDÕES NEGATIVAS DE DÉBITOS FISCAIS. DISPENSA DE APRESENTAÇÃO NA CONCESSÃO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (1) ALEGADA INOBSERVÂNCIA DO ART. 932, IV, DO NCPC. AFASTAMENTO. ENTENDIMENTO DOMINANTE. SÚMULA Nº 568/STJ. (2) VIOLAÇÃO DOS ARTS. 57, 58 E 83 DA LEI Nº 11.101/2005 E 191-A DO CTN. TRIBUNAL ESTADUAL QUE, NA ÉPOCA DA CONCESSÃO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL COM DISPENSA DA CND, APRECIOU A QUESTÃO SOB A ÓTICA DA EXISTÊNCIA DA LEI Nº 13.043/2014 E JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE. ADMISSIBILIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO PROVIDO. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE, E, NESSA EXTENSÃO, NÃO PROVIDO. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
A lei 14.112/20 trouxe substanciais alterações para a lei 11.101/05, conferindo-lhe modernidade com a inclusão de muitos institutos já consagrados pela jurisprudência, tal como a possibilidade de renovação do stay period, além de incluir dispositivos relativos ao financiamento das empresas em crise, negociação antecedente, regras de insolvência transnacional e outros.
No campo dos créditos fiscais Federais também houve sensível alteração da lei 10.522/02, com extensa ampliação do tratamento do crédito tributário, não somente ampliando os prazos dos parcelamentos, mas com possibilidade de transações tributárias, utilização de prejuízos fiscais, etc.
A partir de então, houve uma profunda mudança na jurisprudência do STJ, que passou a exigir a apresentação da CND para que pudesse haver a concessão da recuperação judicial, desde que na esfera da Fazenda Pública respectiva houvesse legislação adequada para transação, verbis:
RECURSOS ESPECIAIS. EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. FALHA NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA. DECISÃO SURPRESA. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO OCORRÊNCIA. CONVOLAÇÃO. FALÊNCIA. HIPÓTESES. NÃO CONFIGURAÇÃO. CERTIDÕES NEGATIVAS. APRESENTAÇÃO. NECESSIDADE.
(REsp n. 2.160.090/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 18/3/2025, DJEN de 24/3/2025.)
Em síntese, o STJ, diante da alteração substancial promovida pela lei 14.112/20 em relação ao tratamento do crédito tributário, passou a exigir, como condição da concessão da recuperação judicial, a apresentação da CND, sob pena de suspensão do procedimento e retomada das execuções individuais, sem, contudo, possibilidade de se convolar a recuperação judicial em falência, por ausência de previsão legal.
De proêmio quero consignar o papel fundamental do colendo STJ em matéria de insolvência (sem embargo à sua atuação em outros assuntos). O aludido tribunal superior tem cumprido suas missões constitucionais com louvor diante da proficiência, sensibilidade e rapidez, a partir do momento em que as causas lhe são apresentadas, contribuindo para a segurança jurídica dos temas que envolvem o direito das empresas em crise.
Especificamente em relação à atual situação do tratamento do crédito fiscal na recuperação judicial, não obstante a evolução legislativa e o novo entendimento do STJ, ainda possuímos alguns desafios, que buscarei apresentar, já considerando como premissa que a recuperanda cumpriu com todos os seus ônus processuais e materiais, afastando da discussão hipóteses de desídia ou má-fé da devedora.
O primeiro deles relaciona-se à suspensão da recuperação judicial por causa da ausência de CND e, indiretamente, o óbice à implementação do plano para pagamento dos créditos trabalhistas.
Ao se determinar que a recuperação judicial fique suspensa enquanto não houver o tratamento adequado ao crédito tributário, impede-se que os credores trabalhistas sejam pagos, o que cria uma situação desafiadora, na medida em que o crédito trabalhista prefere ao crédito tributário, conforme previsão do próprio CTN, em seu art. 186. Isso é algo que deve ser levado ao Tribunal da Cidadania para nova reflexão.
Outro ponto que necessita de melhor reflexão é a suspensão da recuperação judicial com a retomada das execuções individuais.
A retomada das execuções individuais pode desconfigurar por completo o plano aprovado, ou seja, todo o esforço engendrado pelo devedor, seus credores e pelo próprio Poder Judiciário pode cair por terra, já que os credores retomarão as medidas executivas individuais que podem resultar no seu esvaziamento e na impossibilidade de sua implementação em momento posterior.
Outrossim, ainda nesse ponto, é preciso entender que hoje (e não se sabe se e quando isso poderia mudar) o tempo de trâmite do processamento da recuperação judicial não é o mesmo tempo do trâmite do procedimento administrativo de transação tributária.
Há claro descasamento entre ambos os procedimentos.
Ainda que a recuperanda seja diligente em requerer o parcelamento tributário no exato minuto após o deferimento do processamento da recuperação judicial e, ainda que contemos com excelente quadro de procuradores Federais, não há qualquer garantia de que o pedido de transação tributária seja apreciado no momento da concessão da recuperação judicial, sobretudo diante da notória falta de condições da Procuradoria da Fazenda Nacional em absorver todas as demandas que lhe são apresentadas.
Diante de tais colocações, é possível perceber que ainda precisamos caminhar para uma solução de equilíbrio entre a preservação da empresa e o adimplemento dos créditos fiscais.
Sem pretensão de esgotar o debate ou de alguma pretensão de estabelecer meu ponto de vista como o correto, proponho uma solução que, a meu ver, consegue conciliar o adequado tratamento do crédito tributários em processos de recuperação judicial e o direito de se buscar o soerguimento da operação empresarial.
Ao invés de conferir exíguo prazo de 90 dias para obtenção da CND e, na impossibilidade de sua obtenção no prazo assinalado, suspender a recuperação judicial com a retomada das execuções individuais, o melhor caminho seria conferir o prazo de um ano para readequação do passivo tributário da empresa, mas com a imediata concessão da recuperação judicial e cumprimento do plano.
Essa alternativa prestigia a prelazia constitucional do crédito trabalhista frente aos demais e preserva o resultado econômico do processo de recuperação judicial que é o plano aprovado entre as partes. Além disso, ainda que se argumentasse que o prazo ânuo é dilatado, não faltam casos para ilustrar que muitos processos de transação tributária são complexos e demandam tempo muito superior a 90 dias para que empresa e Fisco cheguem num consenso.
Mesmo na hipótese de insucesso de transação tributária após o prazo de um ano não haverá prejuízo ao Fisco, pois a ele está resguardado o direito de manejar a competente execução fiscal com todos os privilégios processuais e materiais inerentes à cobrança do crédito tributário. E com mais chance de sucesso, pois a empresa continua operando no mercado e com perspectivas de soerguimento da atividade, o que pode garantir a existência de patrimônio para adimplemento do débito.
Portanto, além da proposta apresentada, outras soluções devem ser pensadas visando o equilíbrio entre a recuperação da empresa e o tratamento adequado do crédito fiscal. Entretanto, é importante que tenhamos uma visão mais consentânea com o caráter econômico da recuperação judicial, a fim de transpor os obstáculos estruturais ainda existentes, mediante a aplicação de uma visão mais pragmática (tal como no Direito norte-americano) e que considere as consequências das alternativas dispostas.
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1 Recomendo fortemente a leitura do artigo da Professora Sheila Christina Neder Cerezetti intitulado ” As Classes de Credores como Técnica de Organização de Interesses: em Defesa da Alteração da Disciplina das Classes na Recuperação Judicial”, que se encontra no Livro “Direito das Empresas em Crise: Problemas e Soluções, coordenado pelos professores Paulo Fernando Campos Salles de Toledo e Francisco Satiro.
Certidões negativas de débitos tributários e recuperação de empresas – Migalhas