João de Oliveira Rodrigues Filho
O sistema de insolvência brasileiro sofreu profunda modernização com o advento da lei 11.101/05. Saíram de cena os arcaicos processos de falência e concordata tratados pelo decreto-lei 7.661/45, para a entrada de um novo procedimento falimentar, mais célere e objetivo, e do instituto da recuperação judicial, com alguma inspiração no modelo norte-americano de reorganização de atividades empresariais, previsto no Chapter 11 do US Bankrupcty Code.
Entretanto, a despeito da modernização proporcionada pela lei 11.101/05, não houve o alcance de maior objetividade no tratamento da falência, seja pela insuficiência das regras estabelecidas, seja pela cultura de desvalorização da figura do empreendedor e do lucro no cenário nacional.
Ao permanecer o estigma sobre a figura do falido e a incompreensão de que o empreendedorismo se faz num ambiente de risco, no qual o insucesso nem sempre é fruto de fraude ou dolo de lesionar os demais players do mercado, muitas recuperações judiciais foram ajuizadas de forma temerária, quando já não mais havia atividade empresarial para se soerguer.
Nesses casos, embora o ideal fosse a adoção da via falimentar para aplicação ao direito de recomeço (fresh start), por meio da liquidação da atividade mediante o pagamento dos credores com os ativos que ainda restavam, em razão da ausência de objetividade para utilização do instituto, acabou-se por criar um cenário de má utilização das recuperações judiciais e da continuidade da imagem negativa da falência.
Diante do dinamismo inerente à vida humana e, consequentemente, ao exercício da empresa, além das situações acima descritas, foi percebida a necessidade de atuação do legislador para fortalecer a lei 11.101/05, a fim de que soluções consolidadas pela jurisprudência pudessem ser incorporadas ao texto legal, bem como para que novos institutos fossem inseridos, tudo com vistas à melhoria do sistema não só visando maior segurança jurídica, mas, também, com o escopo de conferir aos agentes econômicos e aos operadores do direito outros instrumentos voltados a garantir efetividade tanto da recuperação judicial como do processo falimentar.
A sobrevinda da lei 14.112/20 trouxe auspiciosas inclusões no texto da lei 11.101/05. Dentre muitas alterações, pode ser notado um profundo trabalho legislativo, após oitiva democrática das pessoas do meio jurídico e acadêmico, com a intenção de se conferir mais objetividade e eficiência dos processos de falência e de recuperação judicial.
Uma das boas alterações trazidas pela novel legislação está no artigo 114-A da lei 11.101/05, que permite o encerramento da falência da empresa acaso não existam bens suficientes sequer para o custeio do processo.
Embora no Brasil ainda não exista aprofundamento na discussão sobre a análise econômica do Direito, é importante ter em mente a realidade da finitude de recursos materiais e humanos em qualquer área, pública ou privada. No Poder Judiciário não é diferente. A inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF) não pode funcionar como elemento único no acesso à justiça, desprezando-se as inexoráveis limitações existentes para atendimento das demandas que lhe são submetidas.
Trazendo a discussão para o campo do direito de insolvência, temos situações diversas de tramitação de processo de falência sem utilidade alguma, seja porque inexistem recursos para serem revertidos em pagamento aos credores, seja pela própria ausência de credores habilitados para formação da massa falida subjetiva. Esse contexto evidencia o puro desperdício de recursos públicos, ao manter a atuação do Poder Judiciário sem qualquer utilidade no provimento jurisdicional final.
Na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo/SP, adotou-se a posição de extinção de tais processos, por perda superveniente de objeto relacionado à pretensão deduzida. Mas, embora houvesse aceitação, a solução não estava presente na lei 11.101/05.
Com o advento do artigo 114-A da lei 11.101/05, não só a previsão legal atinge a segurança jurídica de previsibilidade legislativa sobre o encerramento de processos de falência sem ativos para reversão aos credores, mas, de outro lado, garante o equilíbrio que deve existir entre o direito de acesso à jurisdição e a possibilidade de encerramento de um processo judicial em razão da impossibilidade de entrega material da prestação jurisdicional, em razão de circunstâncias de fato alheias à atuação do Poder Judiciário.
Manoel Justino Bezerra Filho1 bem sintetiza a essência do processo de falência:
Como se observa, o escopo maior da falência é a liquidação dos bens do falido, a fim de que seus débitos sejam pagos com o proveito da venda de tais ativos, respeitada a ordem legal estabelecida, cuja função é proporcionar tratamento paritário entre os credores.
A existência de um procedimento de execução concursal é bem explicitada por Fábio Ulhoa Coelho2:
Para evitar injustiça – privilegiando os mais necessitados, tornando eficazes as garantias legais e contratuais ou conferindo iguais chances de realização do crédito a todos os credores de mesma categoria -, o direito afasta a regra da individualidade da execução e prevê, na hipótese, a instauração da execução concursal, isto é, do concurso de credores (no passado recente, a tecnologia costumava designá-lo também por execução “coletiva” expressão que hoje deve ser reservada ao processo de satisfação do direito objeto de ação civil pública, na forma da Lei n. 7.347/85). Se o devedor possui patrimônio negativo, menos bens que os necessários ao integral cumprimento de suas obrigações, a execução deles não poderá ser feita de forma individual, o que levaria à injustiça referida de início. Deve processar-se como concurso, ou seja, envolvendo todos os credores e abrangendo todos os bens, reunindo a totalidade do passivo e do ativo do devedor.
Outra função do processo falimentar, a qual não encontra consenso doutrinário, seria proporcionar o encerramento da própria atividade empresarial, com o advento da sentença de encerramento do procedimento.
Sérgio Campinho3, ao afirmar não ser a pluralidade de credores pressuposto essencial ao processo de falência, firma a seguinte posição:
Professamos a orientação de que o fim maior e imediato do instituto falimentar é o de propor providência judicialmente realizável para resolver a situação jurídica de insolvência do devedor empresário. Está vocacionado, na nova lei, a promover a liquidação do patrimônio insolvente, saneando o mercado e assegurando a proteção do crédito. Esse escopo deve ser perseguido e para sua realização se faz desinfluente a verificação da existência de um ou mais credores, seja para a instauração da falência, seja para o seu prosseguimento, a qual, por certo, adotará, na existência de credor único, rito simplificado, com a superação de diversos atos processuais.
Tal posição jurídica coloca o processo de falência como instrumento não só voltado ao pagamento dos créditos do empresário ou sociedade empresária insolvente, mas, também, como medida jurídica destinada ao saneamento do mercado, com objetivo de recuperação dos créditos investidos na atividade e com a retirada da atividade do cenário de empreendedorismo, permitindo que o espaço seja ocupado por outro empreendimento em condições de melhor operabilidade.
Nesse ponto, o citado autor, ao tratar do encerramento da falência, assim dispõe vernaculamente4:
Diversa, porém, será a consequência se o falido for sociedade empresária. A falência é causa de dissolução da sociedade (Código Civil e 2002, arts. 1.044; 1.051, I; 1.087 e Lei 6.404/76, art. 206, II, c). Com a sentença que decretar a falência, tem-se verificado a causa dissolutória, desencadeando a liquidação do ativo para pagamento do passivo. A partir do trânsito em julgado da sentença de encerramento, a pessoa jurídica estará extinta, competindo arquivar a prefalada decisão, para se ter por cancelado o registro na Junta Comercial. A ideia do procedimento falimentar como uma das formas de dissolução e liquidação da sociedade empresária, consagrada na Lei de Sociedades Anônimas e no Código Civil de 2002, vem corroborada na Lei n. 11.101/2005. Com efeito, a falência é um fato jurídico irreversível. Não se recuperanda a empresa, segundo os procedimentos nela disciplinados, serão ela e a sociedade que a explora liquidadas. A própria permissão legal para continuação da atividade é sempre em caráter provisório e será executada por terceiro, que não a sociedade falida. O conceito de falência-liquidação na lei vigente ganha reforço com a regra transitória que obsta a concordata preventiva nos processos em curso anteriormente à vigência da nova lei, os quais, de resto, permanecem regidos pelo Decreto-Lei n. 7.661/45. Inclusive, nesses casos, poderá ser promovida a alienação dos bens que integram a massa falida assim que concluída a sua arrecadação, independentemente da formação do quadro-geral de credores (art. 192, caput, e § 1º). Mas a constatação não impede que os sócios, de posse do remanescente do ativo, ao invés de partilharem seu produto, restabeleçam a mesma empresa, constituindo, porém, nova sociedade para esse fim, embora com o mesmo objeto.
Já Manoel Justino Bezerra Filho5 possui entendimento diverso sobre esse tema:
De toda forma, há o consenso sobre a finalidade da falência em buscar a recuperação de crédito dos credores da falida por intermédio de aplicação das regras da execução concursal. Todavia, em muitos casos verifica-se a ausência de ativos necessários ao pagamento de créditos e ao próprio custeio do processo.
Com o advento da lei 14.112/20, há, agora, previsão expressa de encerramento do processo falimentar, quando ausente a arrecadação de ativo, ou quando aqueles que forem arrecadados forem insuficientes ao pagamento das despesas do processo, verbis:
Art. 114-A. Se não forem encontrados bens para serem arrecadados, ou se os arrecadados forem insuficientes para as despesas do processo, o administrador judicial informará imediatamente esse fato ao juiz, que, ouvido o representante do Ministério Público, marcará, por meio de edital, o prazo de 10 (dez) dias para os interessados requererem o que for a bem dos seus direitos.
Agora, o administrador judicial, ao constatar a insuficiência de ativos para pagamento de credores e de custeio do processo, deverá informar o Juízo que, ouvido o Ministério Público, fixará prazo de 10 dias para que os credores se manifestem sobre eventual interesse no prosseguimento do processo falimentar, inclusive nos casos regidos pelo decreto-lei 7.661/45.
Algumas observações sobre o texto do art. 114-A.
Embora a inserção legal seja benéfica ao sistema, isso não afasta a responsabilidade de atuação cooperativa e pragmática das partes, para evitar a continuidade do trâmite processual, sem que resultados práticos buscados pela lei possam ser atingidos, conforme mandamento do art. 8º do Código de Processo Civil.
Em relação ao Ministério Público, seja para se manifestar sobre a continuidade do processo de falência na hipótese insuficiência de ativos, seja para sua intervenção em qualquer dos demais termos do procedimento falimentar, há que ser observada a nova redação dos arts. 20 e 21 da LINDB.
Em suas manifestações, o órgão ministerial deverá sempre demonstrar e comprovar as consequências práticas do seu posicionamento, frente aos interesses buscados nos diferentes processos do sistema de insolvência, vedando-se manifestações meramente baseadas em valores jurídicos abstratos (art. 20 da LINDB), sem prejuízo de demonstrar a necessidade e a adequação da medida proposta ou da invalidação de ato por ele requerida, inclusive em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único da LINDB)
Ademais, em qualquer pretensão veiculada pelo Ministério Público, levando-se em consideração os objetivos dos mais variados processos do sistema de insolvência, o interesse público do sistema e os interesses privados existentes em jogo, deverá o aludido órgão estatal, quando buscar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21 da LINDB).
Verifica-se, assim, o equilíbrio entre a previsão de atuação do Ministério Público nos processos da lei de insolvência e a busca de real efetividade em sua participação, considerando, ainda, que a oportunidade de eventual apuração de crime falimentar não restará prejudicada na hipótese de encerramento do processo falimentar por ausência de ativos.
Já em relação aos credores, o mesmo raciocínio também deve ser seguido.
Ainda que eventualmente algum credor se disponha em custear o prosseguimento do processo falimentar, na hipóteses de insuficiência de ativos para reversão em recursos voltados ao seu custeio e ao adimplemento de débitos, haverá de justificar seu interesse processual, seja em relação à necessidade de atuação do Poder Judiciário na espécie, seja em função da utilidade do provimento jurisdicional que se busca na falência, que é o pagamento de créditos e a liquidação sociedade empresária falida como forma de saneamento do mercado.
Desse modo, o credor que se manifestar pela continuidade do processo de falência, nos termos do art. 114-A da lei 11.101/05, deverá demonstrar como realizará o pagamento das despesas do processo falimentar, compreendendo a remuneração do administrador judiciais e dos demais atos processuais, o racional econômico voltado ao prosseguimento do feito e lastro probatório que permita aferir, em tese, a possibilidade de real entrega da prestação jurisdicional que se busca na execução concursal.
Ausentes esses elementos, está o Poder Judiciário autorizado a encerrar o processo falimentar por insuficiência de ativos, sem a necessidade de formação da massa falida subjetiva e remetendo cópia da decisão a fim de que seja dada baixa nos registros da sociedade empresária junto à Junta Comercial local e à Receita Federal do Brasil, para cancelamento dos cadastros, como forma de dissolução da sociedade, nos termos do art. 51, §3º, do Código Civil.
Outro ponto que merece destaque é a possibilidade imediata de aplicação do art. 114-A da lei 11.101/05 aos processos pendentes.
O art. 5º, caput e seu §1º, da lei 14.112/20 estabelecem as regras de direito intertemporal das alterações que introduziu na Lei 11.101/2005 e estão assim dispostos:
Art. 5º Observado o disposto no art. 14 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) , esta Lei aplica-se de imediato aos processos pendentes.
I – a proposição do plano de recuperação judicial pelos credores, conforme disposto no art. 56 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ;
II – as alterações sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial e sobre a ordem de classificação de créditos na falência, previstas, respectivamente, nos arts. 49 , 83 e 84 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ;
III – as disposições previstas no caput do art. 82-A da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ;
IV – as disposições previstas no inciso V do caput do art. 158 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.
Em nenhuma das situações elencadas está descrita qualquer proibição à aplicação imediata do art. 114-A da lei 11.101/05, o que permitirá, por pedido do administrador judicial ou por determinação de ofício do Juízo respectivo, a observância do novo dispositivo legal, a fim de que os processos de falência pendentes, inclusive aqueles que tramitam sob a égide do decreto-lei 7.661/45, nos quais não haja ativos suficientes para pagamento de credores ou custeio de sua tramitação, possam ser encerrados, com o esgotamento da prestação jurisdicional e o saneamento do mercado com a retirada das empresas não recuperáveis.
Portanto, com a previsão do artigo 114-A da lei 11.101/05 foi conferido ao sistema de insolvência brasileiro um importante instrumento não somente para o encerramento de processos que não conseguirão atingir sua finalidade, mas, um elemento norteador para o caminho de maior objetividade no tratamento do processo falimentar e, consequentemente, de aprimoramento do sistema de insolvência brasileiro.
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1 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Lei 11.101/2005 comentada artigo por artigo. 12ª edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2017. Página 238.
2 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14ª edição. São Paulo. Thomson Reuters Brasil. 2021. Página 287
3 CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial. Falência e Recuperação de Empresa. 11ª edição. São Paulo. Saraiva Educação. 2020. Página 212.
4 Op. cit, páginas 406/407.
5 Op. cit, página 307.
https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/348087/um-novo-caminho-de-objetividade-ao-processo-falimentar?s=WA