Andre Vasconcelos Roque, Vivianne da Silveira Abílio e Marcely Ferreira Rodrigues
A Recuperação Judicial, tem como objetivo precípuo a preservação da atividade empresarial, viabilizando o soerguimento da empresa economicamente viável, mas que esteja em transitória situação de crise.
terça-feira, 12 de janeiro de 2021
Como se sabe, a avaliação econômico-financeira é essencial em qualquer Recuperação Judicial e sua análise fica a cargo dos credores, notadamente por ocasião da Assembleia Geral de Credores. Cuida-se de verificação se a atividade ainda existente, porém cambaleante, possui condições de soerguimento, especialmente à luz das premissas postas no Plano de Recuperação Judicial.
Tal questão remete ao mérito da Recuperação Judicial e não se confunde com outra, que se põe no plano de sua admissibilidade – mais especificamente, do interesse processual.
Trata-se, em um de seus aspectos, da necessária constatação, pelo juízo recuperacional, da efetiva existência de atividade empresarial legitimadora do pedido de Recuperação Judicial.
O procedimento de Recuperação Judicial, como é cediço, deve observar, para o regular processamento do pedido, os requisitos de admissibilidade (pressupostos processuais e condições da ação) comuns a qualquer processo. Dúvidas não há que tais requisitos devem ser adaptados às peculiaridades do procedimento recuperacional, mas isso não afasta sua observância obrigatória pelo juízo da Recuperação Judicial, inclusive de ofício, por força do art. 485, § 3º do CPC.
Daí ter o magistrado que confirmar a existência das condições de ação, que permitem ao jurisdicionado legitimamente exigir o provimento por ele buscado. Entre tais condições é que a doutrina enquadra o interesse de agir, compreendido como o reconhecimento de que a prestação jurisdicional solicitada é necessária e útil.1
Assim é que, no âmbito da Recuperação Judicial, deve o magistrado avaliar se a atividade empresarial que se busca tutelar existe e está ativa. Isso porque tal procedimento tem como objetivo precípuo a preservação da atividade empresarial, viabilizando o soerguimento da empresa economicamente viável, mas que esteja em transitória situação de crise.2 Daí ser fundamental a avaliação sobre se aquele que pleiteia Recuperação Judicial exerce efetivamente a atividade empresarial; afinal, a resposta negativa fulmina a própria justificativa, em tese, para o processamento do pedido – resultando na falta de interesse, seja pelo viés da necessidade, seja pelo viés da utilidade.3
A partir do pedido formulado, passa-se a verdadeiro juízo de admissibilidade por meio do qual será possível aferir se estão efetivamente preenchidas as condições para o processamento do pedido, nas quais se encontra a necessidade de demonstração da existência de atividade econômica pelo empresário. Ao verificar a regularidade do pedido à luz do interesse processual, compete ao magistrado avaliar se há efetiva atividade empresarial, sob pena de extinção do processo.4
A intervenção precisa e oportuna do magistrado pode evitar o processamento de pedidos de recuperação cuja finalidade última encontra-se não na efetiva recuperação de uma (inexistente) atividade, mas na utilização abusiva do procedimento (e do poder judiciário). Trata-se simplesmente do controle de legalidade exercido em qualquer atividade estatal, atribuído no processo civil ao magistrado, não já enfrentamento de questões econômicas – como se reconhece em jurisprudência.5
Os Tribunais têm contribuído com essa análise, como se pode constatar, por exemplo, em recente precedente proferido pela 2ª Câmara de Direito Empresarial do TJ/SP, no qual se determinou a imediata exclusão de “sociedades inoperantes” do polo ativo de procedimento de Recuperação Judicial. O caso envolvia grupo econômico formado por diversas sociedades voltadas à incorporação imobiliária, tendo os julgadores reconhecido que não havia “atividade empresarial em andamento”.6 Como consequência, determinou-se a exclusão de tais sociedades do processo.
Assim, muito embora o indeferimento da petição inicial em decorrência do não cumprimento das condições da ação (in casu, interesse necessidade e utilidade) possa ser realizado de imediato pelo magistrado – uma vez que a inexistência de atividade empresarial, caso constatada, configura vício insanável -, a expressa inclusão do procedimento de constatação prévia pela lei 14.112/20, que acrescentou o art. 51-A à LRF, apresenta-se como importante reforço.
A prática, já chancelada nos tribunais,7 encontra agora expressa previsão legal, a fortalecer o papel do magistrado, especialmente em casos em que há fundada dúvida sobre a atividade empresarial.
Uma vez constatada a inexistência de atividade empresarial, nos termos do art. 51-A da LRF, deve-se indeferir o pedido, impedindo-se o processamento ilegal da recuperação pleiteada. O vício, nesse caso, remete ao próprio cerne do pedido – a ausência de interesse de agir representado pela necessidade e pela utilidade do pedido – de modo que não é sanável: daí porque o indeferimento ocorre de pronto, sem a possibilidade de emenda da petição inicial e impedindo a repropositura da demanda, na forma do art. 486, § 1º, do CPC.
A constatação prévia, cabe destacar, em nada se confunde com a competência exclusiva dos credores para realizarem a avaliação econômico-financeira a respeito do soerguimento da empresa. Trata-se de questão que antecede essa análise: existe alguma atividade empresarial a ser preservada? Se a resposta for negativa, a própria função da Recuperação Judicial esvai-se, já que não há o que ser tutelado nos termos do art. 47 da LRF.8 Existindo atividade empresarial, aí sim a avaliação das condições reais de seu soerguimento remete ao mérito da Recuperação Judicial, que deverá ser apreciado pelos credores, notadamente por ocasião da AGC.
No caso do precedente já citado, a 2ª Câmara de Direito Empresarial do TJ/SP reconheceu que “as sociedades que não exercem, atualmente, qualquer atividade empresarial, sejam elas de propósito específico ou não, igualmente, não merecem o processamento do pedido de recuperação judicial”. A questão, portanto, não é de possibilidade econômica de soerguimento, mas da efetiva existência de atividade a ser soerguida. É primeiro necessário demonstrar que há atividade empresarial para, só então, sugerir-se proposta econômica para sua preservação. A demonstração da atividade é avaliada pelo juiz, no momento que aprecia a existência de interesse de agir. Por outro lado, a viabilidade da proposta econômica é verificada pelos credores, ao aprovarem ou rejeitarem o Plano de Recuperação Judicial.
Daí o conteúdo atribuído pelo § 5º do novo art. 51-A da LRF ao procedimento de constatação prévia e a expressa indicação de que não se trata de efetuar avaliação da viabilidade econômica da atividade – uma vez que esse procedimento compete exclusivamente aos credores -, mas avaliar se há condições de soerguimento. Ou seja, é pressuposto que haja, efetivamente, o que ser recuperado – constatação mínima que deve ser realizada o mais cedo possível em benefício de toda a sociedade.9
A pertinência da constatação prévia para verificação da existência de atividade empresarial, portanto, deve ser avaliada à luz de todo o contexto fático que acompanha o pedido de Recuperação Judicial. Há hipóteses em que notoriamente se sabe da existência de atividade ainda em exercício ou, ao contrário, da sua total ausência. Na primeira hipótese, a constatação ainda pode servir à checagem dos documentos indispensáveis ao pedido; na segunda, contudo, sequer há necessidade de sua realização, tratando-se de fatos que já são de conhecimento público.
A previsão do novo art. 51-A, assim, reforça a prática já consagrada nos tribunais e garante aos credores e ao próprio Poder Judiciário a segurança de que os limitados recursos (financeiros e humanos) despendidos com a Recuperação Judicial não serão desperdiçados com casos em que não há qualquer chance de soerguimento da atividade empresarial.
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1 De acordo com clássica definição doutrinária: “Essa condição da ação assenta-se na premissa de que, tendo embora o Estado o interesse no exercício da jurisdição (função indispensável para manter a paz e a ordem na sociedade), não convém acionar o aparato judiciário sem que dessa atividade se possa extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob esse prisma, que, em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja necessária e adequada. Repousa a necessidade da tutela jurisdicional na impossibilidade de obter a satisfação do alegado direito sem a intercessão do Estado. (…) Adequação é a relação existente entre a situação lamentada pelo autor a vir a juízo e o provimento jurisdicional concretamente solicitado.” (Ada Pellegrini Grinover, Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Processo, 26ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009, p. 281.)
2 “Nos termos do que dispõe o art. 330, inc. III, do Código de Processo Civil, a petição inicial será indeferida quando o autor carecer de interesse processual. Nesse sentido, se não estiver presente o interesse processual, seja na modalidade necessidade, seja na adequação, não se deve sequer iniciar o processo judicial. Tratando-se de recuperação judicial, o interesse processual (adequação) será revelado pela capacidade da empresa em crise gerar os benefícios que a lei busca tutelar, conforme estabelecido no art. 47 da lei 11.101/05.” (Daniel Carnio Costa e Eliza Fazan, Constatação prévia em processos de recuperação judicial de empresas: o modelo da suficiência recuperacional (MSR), Curitiba: Juruá, 2019, p. 25.)
3 “Resumindo: o interesse de agir exprime, de um lado, a exigência de que a parte recorra ao órgão jurisdicional, pleiteando a tutela de direitos, apenas quando não disponha, no terreno extraprocessual, outros meios para a satisfação daqueles, ou quando esgotados infrutiferamente os instrumentos de direito material postos à sua disposição; de outro, que a escolha entre os diversos meios processuais previstos pelo ordenamento jurídico recaia sobre aquele que assegure a via mais rápida, econômica e coerente para atender utilmente à pretensão deduzida pelo autor.” (Antonio Carlos Marcato, Procedimentos Especiais, 18ª ed., São Paulo: Atlas, 2021, p. 13.)
4 Como já se pontuou em doutrina, não havendo atividade empresarial, não há como se processar o pedido de recuperação: “(…) Determinou a Lei que o empresário deverá exercer atividade regular há pelo menos dois anos. A primeira questão relevante que desponta desse requisito é a necessidade de atividade. Para que possa pretender sua recuperação judicial, o empresário ou a sociedade empresária deverão desempenhar atividade empresarial. Considerou a Lei que os empresários ou as sociedades empresárias inativas que não possuam atividade empresarial não têm o que ser recuperado. Outrossim, como a recuperação judicial visa à manutenção da fonte produtora, dos postos de trabalho e da geração de benefícios sociais, o empresário sem atividade não atende aos requisitos legais para a obtenção do benefício. Se evidenciada a falta de atividade, o pedido de recuperação judicial deverá ser inicialmente indeferido” (Marcelo Barbosa Sacramone, Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 193).
5 “Apelação. Pedido de recuperação judicial. Sentença que indeferiu o processamento da recuperação com base em perícia prévia que concluiu pela inviabilidade da atividade empresarial da autora. Enunciado VII do Grupo de Câmaras Empresariais deste Tribunal. Controle judicial de legalidade, que abrange questões relativas a fraude e abuso de direito. Regularidade da designação da perícia prévia. Conjunto probatório que revela a inexistência de atividade empresarial e a utilização abusiva do instituto da recuperação judicial, eis que o pleito recuperacional é voltado meramente à suspensão das ações movidas contra a autora. Sentença mantida, porém, por fundamento diverso. Sem honorários recursais. Recurso desprovido” (TJ/SP, ApCiv 1068236-17.2019.8.26.0100, 2ª CRDE, Rel. Des. Maurício Pessoa, julg. 25/3/20).
6 Eis os fundamentos fáticos destacados pela Eg. Câmara na avaliação da questão: “De outro lado, a alegação sobre a ausência de atividade empresarial a ser preservada é igualmente relevante, sobretudo diante das seguintes constatações: primeira, de que não há, atualmente, qualquer obra em andamento; segunda, de que o pequeno estoque de apartamentos encontra-se comprometido em razão de constrições judiciais diversas; terceiro e mais importante, apesar da alegação de que atualmente estão em fase de projeto de 6 (seis) novos empreendimentos, tal como constatou a Administradora Judicial, diligenciou em todos os endereços (dos seis empreendimentos) constatando que referidos terrenos encontram-se sem construções iniciadas apurando a existência de estacionamentos e uma escola de futebol todos os imóveis livres de construção civil. Ou seja, não há, aparentemente, atividade empresarial em andamento.” (TJ/SP, AI 2206743-13.2020.8.26.0000, 2ª CRDE, Des. Rel. Araldo Telles, julg. 4/9/20).
7 Exemplificativamente, Enunciado VII do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do TJSP: “Não obstante a ausência de previsão legal, nada impede que o magistrado, quando do exame do pedido de processamento da Recuperação Judicial, caso constate a existência de indícios de utilização fraudulenta ou abusiva do instituto, determine a realização de verificação prévia, em prazo o mais exíguo possível”.
8 Evidentemente, não se trata de única função da constatação prévia, podendo se identificar outras, como a prevista no próprio § 7º do art. 51-A, qual seja, confirmar qual o juízo competente para a Recuperação Judicial.
9 No mesmo sentido: “Não basta, tão só, que o devedor atenda às exigências dos arts. 2.º e 48 da LRF, discorra sobre sua situação patrimonial e a situação de crise, e instrua a petição inicial com os documentos do art. 51 da LRF para que se verifiquem preenchidas as condições para processamento da ação de recuperação judicial. Estes são os requisitos mais facilmente perceptíveis quando se fala na ação em questão, não se podendo olvidar dos demais requisitos para um juízo de admissibilidade positivo estabelecidos pelo diploma processual civil, como também da imprescindibilidade de uma exposição lógica e coerente das razões da crise econômico-financeira e da demonstração, ainda que perfunctória, da viabilidade econômica”. (José Miguel Garcia Medina e Samuel Hubler, Juízo de admissibilidade da ação de recuperação judicial, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo: RT, ano 17, volume 63, p. 131-147).