Este artigo faz parte das reflexões do Grupo de Estudos sobre Direito Empresarial Contemporâneo na UFRGS, integrante da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo encarregado desta coluna da ConJur, espaço privilegiado para o debate sobre questões essenciais e atuais da dogmática de Direito Privado, tal como é o problema dos efeitos do Código de processo Civil no âmbito das relações privadas.
Passados 10 anos da vigência da Lei de Recuperação de Empresas e Falências (LREF), ainda há muitas questões que carecem de investigação sobre a melhor solução a ser decidida nos casos concretos, dado que a Recuperação Judicial tal como foi positivada ainda encontra-se em formação, seja pelas reformas legislativas já sofridas pela Lei 11.101/2005,[1] assim como pela crescente produção jurisprudencial, avolumada pelo contexto de forte crise econômica e política pela qual o Brasil está passando.
Porém, a edição do novo CPC (Lei 13.105, de 2015) trouxe dúvidas adicionais à Recuperação Judicial, tendo em vista que assim como a Falência, a Recuperação Judicial é conformada por normas tanto de direito material quanto de direito processual.
Ao mesmo tempo que contém uma regra material e principiológica quanto ao seu artigo 47, a Lei 11.101/2005 dispõe de inúmeras disposições procedimentais, como são aquelas previstas para as impugnações de crédito nos artigos 15 a 19 da mesma lei.
Essa natureza mista exige a reflexão sobre como deve ser feita a contagem dos prazos no processo de recuperação judicial, tendo em vista a importante disposição do artigo 219 do CPC:
Art. 219: Na contagem de prazo em dias, estabelecido por lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais.
Não obstante a necessária e saudável ampliação dos prazos como forma de adequar a atividade dos operadores do Direito, especialmente os advogados, à realidade do mundo do trabalho, o computo apenas dos dias úteis para a contagem dos prazos pode provocar um problema prático e preocupante no que tange aos procedimentos de recuperação judicial: um prolongamento excessivo, tendo em vista que a lógica dos prazos previstos na Lei 11.101/2005 quando estabelecidos, levaram em conta um sistema de prazos contínuos: o prazo de 60 dias para apresentação do plano de recuperação, os 180 dias para o stay, 150 dias para realização da assembleia de credores etc.
Diante desse problema, o objetivo deste breve artigo é refletir sobre os efeitos do CPC sobre o modo de contagem dos prazos previstos na Lei 11.101/2005 na hipótese de Recuperação Judicial.
Incidência supletiva
O primeiro ponto a ser tratado passa pela comparação da Lei 11.101, de 2005 com o Decreto-Lei 7.661, de 1945 relativamente ao regime de incidência supletiva do CPC.
O Decreto-lei 7.661/45 era hermético: os procedimentos e recursos eram aqueles previstos no próprio diploma legal, não havendo previsão para aplicação subsidiária do CPC.
A aplicação subsidiária do CPC somente era prevista no artigo 207, que estabelecia serem os deste diploma os prazos de agravo e de apelação. Porém, as hipóteses de cabimento de tais recursos, assim como os procedimentos eram unicamente os previstos na própria lei.[2]
A Lei 11.101/2005 é aberta sob o ponto de vista sistemático, pois foi estruturada a partir de uma matriz teórica e de técnica legislativa completamente distinta daquela do legislador de 1945.
Por isso, não somente há previsão expressa de aplicação do CPC de modo subsidiário por força do artigo 189, como esse Código é mencionado como norma de regência supletiva em outras sete oportunidades.
Do mesmo modo, a lei é estruturada a partir das cláusulas gerais dos artigos 47 e 75, que tratam respectivamente da Recuperação Judicial e Falência, estabelecendo princípios normativos e fins a serem alcançados pelos aplicadores, de modo consentâneo com o conjunto normativo que disciplina o Direito Empresarial de um modo geral, caracterizando uma norma com estrutura axiológica e claramente funcionalista.
Essa característica já tem sido reconhecida pela jurisprudência e doutrina que tem concretizado a Lei 11.101/2005, afirmando tanto a possibilidade de aplicação subsidiária do Código Civil e seus princípios, assim como de outras normas, como por exemplo da Lei das Sociedades por Ações.
No já clássico caso Varig Log por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pela aprovação do plano de recuperação, ainda que esse tenha sido reprovado por parte dos credores, em decorrência do exercício abusivo do direito de voto, com aplicação do artigo 187, do Código Civil. [3]
Com a mesma ratio no sentido da possibilidade de aplicação de outras legislações no âmbito do regime falimentar, o professor Erasmo Valladão acena com a aplicação subsidiária da Lei 6.404/76, a Lei das S.A., para uma Assembleia Geral de Credores, já que sobre o caso em questão o Código Civil não contém regra expressa.[4]
É clara a maior abertura da Lei 11.101/2005, para a incidência de normas complementares (subsidiárias) de outros diplomas com o intuito de reforçar a sua função primordial. A questão é saber como esse fenômeno se comporta frente às exigências do atual CPC.
Direito das Obrigações
Sem pretender aprofundar a discussão sobre a natureza da Lei 11.101/2005, dados os limites e a intenção deste breve artigo, deve-se trazer à tona a célebre passagem em que J.X. Carvalho de Mendonça afirma que a legislação falimentar não altera, extingue ou cria direitos, porém somente modifica o modo como os direitos são exercidos.[5]
A linha de pensamento de J.X. Carvalho de Mendonça, que escreveu sob a perspectiva da Falência e da Concordata, é de que a Lei Falimentar, compreendida como a lei que trata sobre a situação de insolvência do devedor, tem intrínseca relação com a liquidação das obrigações civis e mercantis.
A Lei 11.101/2015 cumpre uma função similar a de todas as leis que tratam sobre crise em outros ordenamentos, incidindo naqueles casos em que as normas tradicionais sobre inadimplemento previstas pelo Direito obrigacional não conseguem resolver os conflitos postos por um devedor que tem um único patrimônio e uma pluralidade de credores.
Neste sentido, a legislação falimentar é uma espécie de última ratio do Direito das Obrigações, pois cumpre a função de promover a liquidação do patrimônio do devedor, bem como estabelece um esquema alternativo de distribuição de bens e valores, afastando a incidência direta do regime regular do Direito das Obrigações.
Portanto, a Lei 11.101/2005 trata sobre um processo que ocorre no plano do Direito Material, que diz respeito ao modo como os direitos são exercidos, ao modo como os credores concorrem para realizar os seus créditos perante o combalido patrimônio (ou atividade) do devedor e, concomitantemente, para implementar este processo é criada uma relação de Direito Público na qual a jurisdição é prestada.
Duplicidade normativa
A consequência direta dessa premissa é a existência de uma duplicidade normativa regendo o processo de Recuperação Judicial: normas de Direito Material e normas processuais.
Porém, como a relação de Direito Material existente é uma relação de liquidação,[6] uma fase da relação obrigacional para equacionar os efeitos do inadimplemento, a participação nessa relação de liquidação tem um caráter procedimental e consequentemente fica submetida a prazos, para que no final o resultado seja a novação produzida pela concessão da Recuperação Judicial ou a falência no caso de sua reprovação.
Os prazos da relação de liquidação não podem ser regidos pelo CPC, pois não se tratam de prazos processuais propriamente ditos, porém de prazos de Direito Material cujo exercício se dá por meio de manifestações realizadas no curso de um processo: verdadeiros prazos para o exercício de direitos de crédito.
Assim pode-se indicar o prazo para a apresentação do plano de recuperação judicial previsto no artigo 53, o prazo de suspensão das ações e execuções (stay period) previsto no parágrafo 4º do artigo 6º, o prazo de 15 e 10 dias, respectivamente para habilitação e impugnação, previstos nos artigos 7º, parágrafo 2º e 8º etc.
Por outro lado, os prazos que dizem respeito propriamente a “prestação da jurisdição”, tais como os prazos de contestação da impugnação de crédito (Art. 11), prazos de agravo, de apelação e de todos os incidentes processuais que não digam respeito às relações de Direito Material são regidos pelo CPC e, consequentemente, serão contados segundo o disposto no Art. 219 do novo diploma adjetivo.
E como devem ser contados os prazos materiais?
A resposta está no Código Civil, que também rege as relações empresariais, sendo aplicável a sua parte geral e os dispositivos do artigo 132[7], cujo modo de contagem é muito similar ao do CPC de 1973, tendo em vista que se tratam de prazos contínuos.
Em síntese, a proposta principal deste artigo como modo de uniformização essencial para a confiabilidade das decisões judiciais, é que os prazos da LREF que digam respeito ao modo como se exercitam os direitos dos credores ou sobre a liquidação dos bens do devedor e que, portanto, digam respeito à relação de liquidação, têm uma natureza material, devendo-se computar os dias de acordo com as disposições do Código Civil.[8]
Caso das impugnações
O caso das impugnações é ilustrativo para diferenciar prazos materiais dos prazos processuais.
A impugnação ao quadro de credores é uma manifestação do credor que não se conforma com o ato do devedor que lhe incluiu no quadro de credores de modo inadequado. Trata-se de uma insurgência quanto ao valor, classificação ou a alguma das características de seu crédito.
Para demonstrar a inconformidade e para postular a alteração do Direito Material deverá manifestar-se no processo de Recuperação Judicial, único modo de obter a retificação e com isso obter os direitos econômicos e políticos que lhe são decorrentes, cujo modo de exercício se dá no prazo e forma do artigo 8º da Lei 11.101/2005.
Porém, apresentada a impugnação, passa-se a tratar de uma relação tipicamente processual, pois para alcançar os fins visados será necessário obter um provimento jurisdicional, ficando tais atos subsequentes vinculados ao crivo do Juiz e do modo de contagem dos prazos processuais previstos no CPC.
Assim, o prazo de 5 dias para contestar deve ser computado segundo a lógica do artigo 219 do CPC.
Em outras palavras, não basta que o prazo esteja previsto na Lei 11.101/2005 para que seja considerado material, pois como identificado no artigo 11, tal prazo é processual e segue a lógica do CPC.
Será necessário, pois, investigar a natureza do prazo: se diz respeito à relação obrigacional e ao modo de exercitar os direitos, será material e regido pelo Código Civil. Se disser respeito a incidentes processuais, a recursos ou à prestação jurisdicional, o prazo será processual e seguirá o modo de contagem do CPC.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
[1] Lei 11.196/2005, Lei 12.873/2013 Lei 13.043/2014 e Lei Complementar 147/2014.
[2] Não obstante o hermetismo sistemático do Decreto-lei 7.661/45, nos últimos anos antes da sua revogação, especialmente após 1988 a jurisprudência vinha atenuando essa característica e admitindo a oposição de embargos de declaração, possibilidade de agravo de instrumento em decisões interlocutórias, etc.
[3] Processo 100.09.121755-9 – Recuperação Judicial – Varig Logística S/A – Varig Logística S/A – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.
[4] FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. Assembleia-Geral de Credores. In: Revista do Advogado – A nova lei de falência e de recuperação de empresas. Ano XXV. n° 83. São Paulo: AASP. Setembro de 2005. p.49.
[5] J.X. Carvalho de Mendonça. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, v. VII.
[6] Sobre a relação de liquidação tratam sobre o tema, entre outros Ruy Rosado do Aguiar Júnior na obra Extinção dos Contratos e Karl Larenz, no seu clássico Direito das Obrigações.
[7] Art. 132. Salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluído o dia do começo, e incluído o do vencimento.
[8] Ponto crucial dessa análise é que o resultado do exercício desses direitos culminará com uma assembleia de credores na qual será deliberada a aprovação ou reprovação do plano. A assembleia é ato que possui uma duplicidade inequívoca, pois ao mesmo tempo em que representa manifestação dos credores é ato integrante do processo de recuperação judicial.
Na mesma perspectiva, não se pode confundir “relação de liquidação” com “liquidação da empresa” ou “liquidação da sociedade”.
https://www.conjur.com.br/2016-jun-06/direito-civil-atual-cpc-efeito-prazos-recuperacao-judicial
Gerson Luiz Carlos Branco é advogado e professor adjunto de Direito Empresarial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.