Crise é oportunidade, dizem os sábios do empreendedorismo. E, em tempos difíceis, a recuperação judicial pode ser a grande chance. Se, por um lado, as recuperações chegaram ao maior patamar dos últimos 18 anos e despertam alarmismo, por outro, o dado pode indicar um melhor aproveitamento do procedimento. Prova disso é que, ao mesmo tempo que as recuperações judiciais aumentaram, as falências diminuíram. De janeiro a julho de 2024, os pedidos de falência caíram 18% em relação ao mesmo período de 2023, de 660 para 544. Já os pedidos de recuperação judicial no período quase dobraram, com um aumento de 79%, de 695 para 1.242.
O crescimento da procura pela recuperação judicial tem sido persistente desde 2021, na saída da crise provocada pela epidemia de covid-19. De todos os processos em matéria de insolvência protocolados em 2021, 48% eram pedidos de recuperação judicial e 52% eram pedidos de falência. Em 2023, a balança já pendia a favor da recuperação judicial na proporção de 59% a 41% e se acentuou ainda mais nos primeiros sete meses de 2024: 70% a 30%.
“Um plano de reestruturação bem elaborado ajuda a restaurar a confiança de credores e investidores”, diz Eduardo Bazani, sócio diretor da Nordex Consultoria Empresarial. “A reestruturação abre oportunidades para a empresa acessar novos recursos financeiros, seja através de investimentos, linhas de crédito ou parcerias estratégicas”, explica.
A legislação também ajuda. A reforma da Lei 11.101/2005 em 2020 marcou um ponto de virada na recuperação judicial. Antes, as empresas recorriam a esse instrumento, quando já estavam em estado terminal, com a intenção de evitar o pagamento das dívidas. E os planos de recuperação primavam pela inadequação, com longos períodos de carência, deságios generosos e parcelas a perder de vista. Agora, com a nova legislação e com os casos de grandes empresas pedindo socorro, a recuperação judicial ficou mais bem vista. Tanto o mercado quanto os empreendedores passaram a entender que a recuperação é uma etapa do processo de reestruturação.
Levantamento da RGF Consultoria mostrou que, no segundo trimestre de 2024, 141 pequenas, médias e grandes empresas entraram em recuperação judicial e 121 saíram do processo. Destas, 74% retomaram a operação sem supervisão judicial, cumprindo seus planos. Observou-se, ainda, que apenas 2% tiveram seu registro encerrado ou foram classificadas como inaptas por possuírem pendências, e 23% foram apontadas como falidas. “Observamos uma melhora na quantidade proporcional de empresas que saem da RJ e retomam a operação sem supervisão judicial. Tal indicador foi de 55% no terceiro trimestre 2023 para 60% no quarto trimestre e de 63% no primeiro trimestre 2024 para 74% no segundo trimestre do ano”, aponta Rodrigo Gallegos, especialista em reestruturação e recuperação judicial da RGF.
Por óbvio, o crescimento de pedidos de socorro diante da insolvência é consequência, também, de dificuldades conjunturais no cenário econômico. Ao fim do primeiro semestre de 2024, mais de um terço dos negócios no Brasil, 6,9 milhões de CNPJs, enfrentava algum grau de inadimplência. Nessa mesma época, os números mostravam que o mercado de insolvência também estava em alta. Os 1.242 pedidos de recuperação judicial nos sete primeiros meses de 2024 é o maior número já registrado para esse período desde o início da série histórica, em 2005, segundo dados da Serasa Experian.
Segundo o economista Luiz Rabi, da Serasa Experian, a tendência é que 2024 supere o patamar de insolvência de 2016, o auge da recessão e dos pedidos de recuperação judicial e falência. “Desde agosto de 2021, o número não para de crescer. Do ponto de vista macro, não estamos piores que em 2016, mas do ponto de vista da inadimplência, estamos”, afirma. Dados do governo federal registram, ainda, o fechamento de 2,1 milhões de empresas no ano, um aumento de 25,7% em comparação ao ano anterior. No mesmo período, foram abertos 3,9 milhões de negócios. Apesar do crescimento de aberturas, a alta taxa de fechamento indica travas para a sustentabilidade dos negócios. Além da inadimplência, que está relacionada com o vencimento de dívidas contraídas durante a crise sanitária da covid-19, também conturbaram o ambiente de negócios, a inflação persistente, a alta taxa de juros e a escassez de crédito. Nesse cenário, a recuperação judicial pode ser uma alternativa interessante para manter a continuidade das operações.
Antes da reforma legislativa de 2020, o buraco era mais embaixo. Levantamento do Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência da PUC-SP e da Associação Brasileira de Jurimetria, com base em processos de recuperação e falência no estado de São Paulo entre janeiro de 2010 e julho de 2017, apontou que apenas 25% das empresas em recuperação conseguiram normalizar suas atividades.
Para Luís Fernando Guerrero, especialista em recuperação judicial e arbitragem do Lobo de Rizzo Advogados, as mudanças foram positivas e tentaram resolver, sobretudo, dois grandes problemas. O primeiro deles é o financiamento, pois sempre foi muito complicado ter dinheiro novo em empresas altamente endividadas. Surgiu, então, o DIP (do inglês debtor in possession financing), modalidade de financiamento para empresas em recuperação que possibilita suprir a falta de fluxo de caixa para arcar com as despesas operacionais enquanto a empresa está sob proteção judicial.
Por meio do DIP financing, há uma injeção de capital novo sem que a empresa, em muitos casos, tenha que ofertar seus bens como garantia, pois esses, quase sempre, já se encontram gravados por dívidas anteriores. Os credores apenas contam com a prioridade na fila de pagamentos em caso de eventual falência. Levantamento do advogado Pedro Freitas Teixeira, professor de Direito Comercial da UFRJ, indica que o número de financiamento deste tipo aumentou em 50 vezes após 2020. Sócio do Teixeira, Prima, Butler Advogados, Teixeira é autor da obra Financiamento dos devedores em recuperação judicial. Outra frente de mudança apontada por Guerrero é o amadurecimento da jurisprudência sobre a venda de unidades produtivas isoladas (UPIs) “limpas”, ou seja, sem obrigações antigas, como condenações trabalhistas, o que as tornaram mais atrativas a compradores. UPIs são um agrupamento de ativos de uma empresa necessários para a manutenção e desenvolvimento de uma ou mais de suas atividades e que podem ser alienados durante o processo de recuperação judicial.
Ele comenta que o incentivo à mediação na insolvência, com o artigo 20-D, também foi essencial. “Hoje você tem uma preparação para que a empresa sinalize ao mercado e aos credores que ela está passando por uma dificuldade. Quando a empresa pede a cautelar pré-insolvência, a chance de vir uma recuperação judicial é razoável. Nesse momento, os credores, que muitas vezes eram pegos de surpresa, já se preparam para conversar ou até para, eventualmente, pesar no tom da negociação. A mediação facilita a negociação, torna a conversa mais franca e fortalece o mercado”, avalia Guerrero.
O procedimento de recuperação empresarial continua caro e inacessível para grande parte das empresas, mas já se nota uma tendência de queda nos custos. O aumento do espectro de empresas em recuperação indica uma ampliação do mercado, com mais advogados especializados, mais peritos, mais administradores judiciais e um barateamento dos serviços. Hoje, vê-se uma descentralização dos pedidos também, com empresas fora do eixo Rio-São Paulo-Minas em recuperação. Outro movimento é o de especialização da Justiça.
Também cresceu o número de recuperações extrajudiciais. Dados colhidos pelo Observatório Brasileiro de Recuperações Extrajudiciais mostram que, entre 2006 e 2024, houve 138 pedidos desse tipo de ferramenta empresarial, sendo que 84 (61%) ocorreram após a mudança na lei em 2020. Caso recente, de 2024, foi o do Grupo Casas Bahia, que tenta organizar uma dívida de mais de R$ 4 bilhões. A recuperação extrajudicial funciona como uma composição financeira da empresa com seus principais credores. É mais rápida e mais barata do que a recuperação judicial e o Judiciário interfere apenas na homologação do acordo.
Enquanto a inadimplência aumenta e os pedidos de recuperação judicial avançam, a demanda por crédito a taxas mais acessíveis cresce. Viabilizar a injeção de crédito num mercado de instabilidade na economia e na política não é tarefa simples, porém é medida imprescindível para a recuperação da economia nacional.
A importância do papel do Judiciário, especialmente num cenário como esse, é indiscutível, vez que a coerência e a previsibilidade de suas decisões são fatores que reduzem incertezas e riscos. O setor aéreo é um exemplo eloquente do que não fazer. O Brasil é campeão em processos judiciais de passageiros contra as companhias por “serviços mal prestados”. De acordo com a Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata), com base em informações reportadas pelas empresas à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), elas desembolsam mais de R$ 1 bilhão por ano em condenações por atrasos e cancelamentos de voo.
A concessão de indenização por dano moral sem necessidade de comprovação do transtorno sofrido até pouco tempo atrás era praxe até mesmo no Superior Tribunal de Justiça. Vale lembrar que outros países não cogitam dano moral em viagens, o reembolso se dá apenas por prejuízos materiais. Aqui, um consumidor tem a chance de gastar R$ 300 com uma passagem e levar R$ 20 mil na Justiça. A judicialização é tão peculiar que a Ordem dos Advogados do Brasil derrubou dezenas de sites que monitoravam atrasos de voo e ofereciam serviços de litigância. Alguns até compravam adiantado o direito de passageiros em troca da cessão.
Levantamento feito pela Latam e publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo mostra que o Brasil, que representa quase metade da operação de todo o grupo, responde por mais de 98% dos processos judiciais movidos pelos clientes contra a companhia, que atua também no Chile, Colômbia, Equador e Peru e tem voos internacionais na América Latina e Caribe, Europa, Oceania, Estados Unidos.
Benevolências jurídicas à parte, fato é que o mercado empresarial (sobretudo o da insolvência) vem amadurecendo muito com novas questões práticas em debate. É o caso da cessão de crédito trabalhista; compra de ativos estressados, DIP Financing; transações envolvendo massa falida; operações estruturadas; operações de fusão e aquisição em situações de distress; aquisição de créditos públicos, precatórios, arbitragem e mais.
Como o investidor prefere colocar o seu dinheiro em cenários claros, o mundo do capital está em compasso de espera no Brasil até que reformas importantes prometidas pelo Congresso Nacional sejam de fato aprovadas – a regulamentação da primeira parte da reforma tributária é a principal delas, mas também estão no radar uma possível reforma nas falências e a atualização de todo o Código Civil – com alterações significativas no Direito de Família, contratos, Direito Digital e no Direito Empresarial.
O mercado de fusões e aquisições está tímido por causa dos juros ainda altos (no Brasil e nos EUA), que desestimulam a tomada de créditos para aventuras empresariais. Esse cenário, no entanto, tende a mudar e o Federal Reserve, o Banco Central norte-americano, ao fim do primeiro semestre de 2024, emitiu sinais de que poderá iniciar um programa de redução de juros ainda neste ano.
Pelo lado dos balanços de empresas brasileiras, Sidney Lima, analista da Ouro Preto Investimentos, afirma que os resultados positivos mostram a resiliência da economia brasileira, apesar do patamar alto da Taxa Selic, hoje em 10,5% ao ano.
A quantidade e o volume de fusões e aquisições em 2023 caíram ao menor nível desde a pandemia. Mas a expectativa, segundo especialistas ouvidos pelo Anuário da Justiça, é de reaquecimento das operações em 2024 ou 2025 com a perspectiva de queda da Selic. Dados da KPMG, multinacional de consultoria e auditoria de empresas, divulgados em agosto, já apontam para uma possível recuperação: o número de fusões e aquisições de empresas brasileiras cresceu 17% no segundo trimestre de 2024, ante o mesmo período do ano anterior (426 neste ano, ante 365 em 2023). O primeiro semestre de 2024 foi marcado por transações bilionárias, como as fusões de Arezzo&Co e o Grupo Soma, duas gigantes do mercado de moda; Amil e Dasa, na área da saúde; e a combinação dos negócios das petroleiras 3R Petroleum e Enauta.
Empresas que abriram capital em 2020 e 2021, na última janela de ofertas iniciais de ações (IPOs, na sigla em inglês) no mercado intensificaram, em 2024, movimentos de fusão com rivais para fortalecer seus negócios, além da busca por sinergia e ganho de valor em um ambiente macroeconômico difícil.
Assim como o cenário de M&As no país, os cenários econômicos local e global também têm impactado o mercado de capitais. Até meados de julho de 2024, com a venda das ações da Sabesp na bolsa, o Brasil enfrentava seca de ofertas de IPOs. O número de empresas listadas na B3 em janeiro de 2024 é o menor desde 2021.
O Ibovespa fechou o primeiro semestre de 2024 com uma queda de 7,66%, o pior resultado para o intervalo desde 2020. No fim de agosto, porém, o mercado deu sinais de reação com a divulgação de dados positivos sobre a economia norte-americana e, consequentemente, a expectativa de corte de juros nos Estados Unidos. Como consequência, o Ibovespa fechou acima dos 136 mil pontos, batendo recordes históricos em sequência.
Gilson Finkelsztain, presidente da B3 (B3SA3), admite que, desde o começo de 2024, estava cético sobre uma retomada de ofertas iniciais de ações na bolsa brasileira. Para ele, havia muita incerteza no cenário – e incerteza, lembra, não combina em nada com o mercado financeiro.
Embora reconheça que hoje há mais clareza sobre os rumos da economia, no Brasil e no exterior, Finkelsztain acha difícil que a seca de IPOs, que já dura três anos, termine logo. “Acho que devemos ter uma retomada de IPOs, provavelmente, no início de 2025”, afirmou ao podcast Expert Talks CEO, da XP. Ele acredita que as taxas de juros se estabilizaram por não existir cenário de inflação descontrolada, ainda que o comportamento do câmbio inspire incertezas.
Entre 2020 e 2021, cerca de 70 empresas estrearam na bolsa brasileira, na esteira de grande liquidez global, com os Bancos Centrais injetando capital na economia no contexto da crise sanitária. No entanto, as ações de boa parte das companhias sofreram desvalorização, seja pelas condições desfavoráveis do mercado, seja pelo seu desempenho.
Em julho de 2024, o Rio de Janeiro anunciou a chegada de nova bolsa de valores, que será operada pela ATG (Americas Trading Group), empresa de tecnologia controlada pela Mubadala, dos Emirados Árabes Unidos. A promessa é a de competir com a B3 a partir de 2025, com a expectativa de reduzir os custos de abertura de capital na bolsa. Entre essas despesas estão comissões e custos de quem assessora a oferta, advogados e auditores.