No último dia 4 de novembro de 2024, o IBRA – Instituto Brasileiro de Rastreamento de Ativos realizou seu VI seminário internacional de rastreamento de ativos, no conselho superior do Ministério Público, cujo tema foi “métricas na solução amigável em insolvência com indicativo de fraude”, em homenagem ao querido e saudoso professor Carlos Fernando Mathias, figura de alegria singular e de vasto conhecimento jurídico, saudado com maestria pelo presidente do conselho do IBRA, Krykor Kaysserlian.
Com o amadurecimento do direito das empresas em dificuldade no Brasil, o instituto da responsabilização nas insolvências também deve evoluir, buscando a melhor solução para a recomposição da massa falida, na proporção da fraude perpetrada. A escolha do tema pelo IBRA é muito pertinente, tendo em vista a crescente celebração de acordos em ações de responsabilidade, gerando resultados e eficiência para todas as partes envolvidas, notadamente, a massa falida e, como consequência, os destinatários dos recursos financeiros – os credores.
O objetivo desta coluna do Migalhas Insolvência em Foco é retratar algumas das relevantes passagens ocorridas no seminário, além de compartilhar reflexões suscitadas durante minha intervenção.
A importância de métricas em acordos no âmbito da insolvência
O conceito de métrica pode ser entendido como um parâmetro para analisar consequências, ações ou estratégias. O Ministro Raul Araújo Filho bem ressaltou a dificuldade em se encontrar as métricas adequadas para os acordos no âmbito da insolvência. A nosso ver, a pergunta delineadora deve ser: diante de uma ação de responsabilidade na insolvência, com o bloqueio de diversos bens, em demanda judicial longa, custosa e imprevisível, como e quando os bens serão realizados em benefício dos credores?, na linha das bem postas palavras de abertura do presidente do IBRA, Rodrigo Kaysserlian.
Para buscar uma resposta a tal questionamento, com o objetivo de se fixar métricas apropriadas para tanto, três premissas nos parecem necessárias, quais sejam: a) análise fática do caso, b) o apuro técnico na aplicação do direito, e c) os critérios que comporão a equação do acordo.
Análise fática e investigação
A ação de responsabilidade na insolvência tem por fim a demonstração de ato fraudulento cometido, em regra, pelo falido ou por terceiros, buscando indenizar a massa falida pelo prejuízo causado, com o (re)ingresso de bens desviados ou do montante correspondente. Antes de se ingressar com qualquer medida judicial, a investigação prévia de tais atos, baseados em fatos pretéritos, deve ser precisa e aprofundada. O principal erro em uma investigação é a conclusão açodada, pautada na “vontade de acusar”, acarretando fragilidade e anulação dos atos processuais.
Em quase duas décadas em que exerci a função de membro do Ministério Público no Rio de Janeiro, obtive a experiência de que uma boa investigação somente gera frutos quando imparcial e desinteressada; caso não tenha encontrado o que procura, procure mais e melhor, como muito bem pontuado por Keith Oliver em sua fala, com o seguinte adágio “you can run, but you cannot hide” (você pode correr, mas não pode se esconder), citando as ferramentas de investigação das Sections 235, 236 do Insolvency Act de 1986 (UK). Somente com um trabalho de inteligência, paciência e preparo a fraude é corretamente identificada, nas palavras proferidas por Martin Kenney.
O promotor de justiça Nilton Belli explanou com precisão a atuação moderna do “Ministério Público resolutivo”, retratando tais premissas, sobretudo em prol da busca do melhor resultado para a ordem econômica, cujo interesse é o objeto maior da presença do Parquet. Em alguns casos, verifica-se uma descrição confusa e, às vezes, desconectada dos fatos com o aparato probatório do processo, o que enfraquece a métrica fática quanto à possibilidade de responsabilização do fraudador e, via de consequência, a possibilidade de um acordo.
Aplicação técnica do direito
A segunda premissa para aferição da métrica como solução amigável na insolvência deve ser a correta aplicação da ciência jurídica, com a aferição de como a técnica é aplicada.
Não se pode confundir o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, previsto no art. 50 do CC (aplicação determinada pelo art. 82-A da lei 11.101/05), com a ação de responsabilidade dos sócios controladores e administradores, prevista no art. 82, tampouco com a mal fadada ‘ação de extensão dos efeitos da falência”, cuja incidência prevista em seu artigo 81, praticamente inexiste, em razão da ausência de sociedades cuja responsabilidade dos sócios é ilimitada, como muito bem explicitado no recurso especial 1.293.636-GO, da lavra do eminente e saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
A exposição do ministro Humberto Martins foi no sentido de que o Brasil possui amplo aparato normativo para coibição da fraude na insolvência, ressaltando a necessidade da correta aplicação das ferramentas jurídicas disponíveis no direito material incidente em cada hipótese. Infelizmente, não raro, denota-se que esses três institutos são confundidos, dificultando a concepção de uma métrica para tratativas na busca de uma solução amigável.
Em suma, apenas com a correta definição fática do conjunto probatório dos autos, aliada à tese jurídica que se pretende impingir ao fraudador, no caso concreto em exame para fins de acordo, é que se poderá, com segurança, ultrapassarmos para a terceira premissa – os critérios métricos.
Critérios métricos
Frederico Rezende, em interessante e precisa fala que antecedeu a minha, elencou três critérios métricos para a realização de um acordo, quais sejam a) a duração e custo do processo, b) a capacidade de pagamento dos fraudadores e c) a probabilidade de ganho de causa, classificando-a como o risco provável, possível e remoto.
Acredito que um quarto critério métrico deve ser adicionado, de caráter subjetivo, pautado na real vontade de busca de uma solução pelo apontado como fraudador e pela massa falida, que em muito decorre de uma evolução cultural do direito das empresas em dificuldade no Brasil, como bem ressaltado esse último ponto por Ivo Waisberg. Para que as tratativas de um acordo se iniciem, e fluam bem, é necessário que as partes estejam amadurecidas e prontas para tanto, dispostas a compreender a situação e quais serão os avanços e concessões de lado a lado; caso contrário, é perda de tempo, eis que não haverá acordo.
Duração e custo do processo. O processo judicial, não apenas no Brasil, mas em boa parte das jurisdições mundiais, é demorado e custoso, devendo ser realizada uma análise racional de até quando a busca de ativos durará, com base na muito bem ponderada afirmação da desembargadora Anglizey Solivan.
O tempo é um fator relevante de eficácia na busca e no rastreamento dos ativos, em sua realização e seu destino aos credores. Alguns estudos jurimétricos e a prática já experimentada em diversos casos revelam que mais de uma década (em alguns casos duas décadas) é necessária para que se tenha um desfecho exitoso. Tal lapso temporal, por si só, retrata um prejuízo natural aos credores da massa, os quais deverão aguardar muito tempo para que um dia que possam receber seus créditos. Além disso, um dos objetivos do direito das empresas em dificuldade é a reinserção dos ativos estressados na economia – o que, a todo evidente, também não ocorre, diante de lapso tão extenso.
Sob o enfoque da pessoa que recai a imputação de fraude, esta também amarga relevante prejuízo em razão do tempo que permanecerá com seus bens bloqueados, muitas das vezes se deteriorando. O fator custo deve ser enfrentado não apenas sob o aspecto financeiro, mas, acima de tudo, o custo de oportunidade e de transação. O bloqueio de ativos do suposto fraudador é apenas o limiar de um processo longo e complexo, não só para esse como também para a massa falida, enfrentando uma série de questões jurídicas inerentes ao direito material elencado, bem como questões processuais, invocadas como, algumas vezes, violadoras do devido processo legal.
Mais uma vez o critério subjetivo, pautando na evolução cultural, tem espaço relevante, para a tomada de decisão na busca de um acordo, pois diversos casos brasileiros concretizaram um cenário comparativo em que as partes se basearão para definir as métricas do possível acordo – países mais avançados no tema, com uma experiência importante em diversos casos, têm maior facilidade nesse momento ao buscar soluções amigáveis desde o início do processo, beneficiando todas as partes, e, sobretudo, alcançando o objetivo principal do direito das empresas em dificuldade: encerrar a atividade econômica o quanto antes, liquidando-a, com a realocação dos ativos na economia.
Capacidade de pagamento. Ultrapassadas as métricas referentes ao tempo e ao custo do processo, impõe-se uma próxima análise, referente à capacidade de pagamento do suposto fraudador.
Trata-se de requisito delicado, pois, de um lado, a massa falida, em tese, já empreendeu todos os esforços para o bloqueio dos bens deste último, não havendo nada mais a se buscar em seu patrimônio; e, de outro, o investigado deverá buscar recursos para o adimplemento do acordo que se pretende entabular. Mais um aspecto cultural a ser superado.
Quando das tratativas, é necessário que as partes deixem de lado o aspecto persecutório processual para ingresso em outra seara, a negocial. O valor negociado para fins de acordo, na maioria das vezes, partirá de um teto como sendo aquele referente aos bens bloqueados no processo que, em conjunto com as métricas já delineadas (contexto probatório, tese jurídica aplicada, tempo e custo), servirão de equação para a busca de um número final, justificado em bases mais sólidas do que apenas a retórica de que “o acordo é melhor do que uma ação judicial”, o que nem sempre é verdade, como bem indicado pelo procurador de justiça Eronides dos Santos.
A liquidação dos bens arrecadados é muitas vezes um entrave ao acordo, em razão da dificuldade na sua consecução, isto é os bens foram arrecadados mas ninguém consegue vende-los, pelas razões já conhecidas dos profissionais da área. O mercado financeiro se refere como o problema de se “prover liquidez a ativos complexos”. Entretanto, existem inúmeras alternativas para isso, como a substituição dos bens e a fixação de leilão com a cláusula de complementação em caso de insucesso, bem como o auxílio de terceiros financiadores interessados, como fundos especializados em ativos estressados, na forma exposta por Andre Montuori ao tratar do “capital inteligente” na solução eficaz de litígios, e tangenciado por Gustavo Sanseverino em relação à liquidação dos ativos.
Mérito da demanda. O critério seguinte é referente ao mérito da causa, classificando o risco como provável, possível ou remoto.
Nesse sentido, uma análise técnica aprofundada por ambas as partes, seguida de diálogo transparente e franco, pode alcançar a classificação desejada. Quando o processo já se encontra em estágio avançado, a tarefa é mais fácil, diante de todos os dados do processo e do percurso engendrado.
O desafio maior será nas hipóteses em que a negociação for pretendida no início da tomada de medidas de busca de ativos do suposto fraudador. Nessa hipótese, o aspecto cultural terá grande importância, fundado na experiência temporal de outros casos e com o que se tem em mãos como conjunto probatório fático, bem como a técnica jurídica aplicada. Assim, as partes poderão chegar a um denominador comum e precificar o acordo, como ocorre em jurisdições internacionais mais avançadas no tema; o que, repita-se, foi construído ao longo de experiências (tempo), cenário que começa a se concretizar no Brasil, mesmo que ainda de forma inicial.
O juiz João Oliveira Rodrigues Filho ressaltou a necessidade de se buscar um racional econômico. Ruy Pereira Camilo Júnior discorreu sobre a técnica de negociação fundada no Best Alternative to a Negociated Agreement – BATNA, denotando como diversos aspectos devem ser levados em consideração na construção de um acordo. Nesse aspecto, o Ministro Paulo Moura Ribeiro bem acentuou que o ambiente brasileiro está cada vez mais propício à busca de soluções amigáveis aos litígios, em prol da eficiência do processo. No que foi acompanhado pelo Ministro Marco Aurélio Buzzi, ao afirmar que o mais importante não é cumprimento frio da lei, mas a realização da justiça. A juíza Clarissa Tauk expôs, de forma didática, que a lei de insolvência brasileira possui disposição própria a incentivar os acordos em diversos momentos do processo.
Conclusão.
No Brasil as falências não chegavam ao fim, tampouco eram eficientes, aí incluídas as medidas de busca de ativos, por mais que obtivessem sucesso num primeiro momento, bloqueando alguns bens.
O ministro Rogério Schietti destacou a importância da justiça procedimental nesse aspecto. A evolução cultural demonstra que os atores do processo de insolvência precisam ter coragem para encerrar um processo de falência, o que se começa a se verificar na prática. As soluções amigáveis em insolvência com indicativo de fraude são cada vez mais concretas, mas, para que isso ocorra, é necessário que nas negociações haja transparência, confiança e vontade das partes, com relevo significativo aos advogados envolvidos, como bem ressaltou o ministro Sebastião Reis Júnior.
A pergunta inicial “diante de uma ação de responsabilidade na insolvência, com o bloqueio de diversos bens, em demanda judicial longa, custosa e imprevisível, como e quando os bens serão realizados em benefício dos credores?”, pode ser respondida com métricas a serem construídas, em muito contribuindo o seminário do IBRA, com a sensação de que ainda temos um longo caminho, porém com bons passos já empreendidos.
Métricas na solução amigável em insolvência com indicativo de fraude – Migalhas