O Projeto de Lei nº 3/2024, que tramita em regime de urgência, propõe alterações na Lei nº 11.101/05 (LRF) que podem trazer profundas modificações no funcionamento do procedimento falimentar e, em especial, na dinâmica entre os credores e na tutela do crédito.
A justificativa apresentada para a urgência foi a de que o processo de falência é moroso e pouco efetivo, havendo pouca participação dos credores; pretende-se equacionar ambas as situações e tornar estes últimos protagonistas do processo. Para atingir tal intento, foi apresentada proposta para imprimir nova dinâmica à falência, impondo que questões fulcrais e sensíveis ao processo sejam necessariamente decididas em assembleia geral de credores, que o juízo se limitará a homologar.
O projeto trouxe também a figura do plano de falência, com escopo mais amplo do que o plano de realização de ativos instituído pela Lei nº 14.112/20, a ser apresentado pela também nova figura do gestor fiduciário, que substituirá o administrador judicial. Mostra-se curioso que a solução proposta pelo projeto para aprimoramento do processo falimentar, de permitir que os maiores credores escolham o gestor da massa falida e definam os rumos do processo, assemelha-se à solução já adotada originalmente pela antiga Lei de Falências, o DL 7.661/45, sem sucesso.
Antes de mais nada, é preciso lembrar a recente alteração à LRF pela referida Lei nº 14.112, publicada em 24/12/2020.
Essa reforma de 2020 promoveu inúmeras e profundas inovações ao procedimento falimentar, munindo-o com institutos que visam a torná-lo mais célere. Todavia, muitas delas ainda não tiveram tempo suficiente para serem percebidas e medidas por estudiosos, para verificar seu impacto, benéfico ou não, ao processo falimentar.
Ao contrário, ainda existem inovações trazidas pela reforma que sequer foram aplicadas, dado o pouco tempo decorrido desde sua vigência. Assim, por exemplo, o prazo decadencial de 3 anos para distribuição de impugnações e habilitações de crédito (§ 10 do artigo 10 da LRF), contado da decretação da falência. Para as falências que já haviam sido decretadas na data da publicação da Lei nº 14.112/20, somente poderia ele se iniciar a partir dessa data, sob pena de prejudicar credores. Logo, esse prazo somente poderá ser aplicado a partir de 2024. Também o prazo do fresh start instituído pela reforma, de três anos (artigo 158, V, da LRF), somente poderá começar a ser aferido após 2024, pelo mesmo motivo.
Os exemplos acima ilustram como os efeitos da Lei nº 14.112/20 no processo falimentar, sobretudo no tocante à sua celeridade e na melhor preservação do valor dos ativos, ainda sequer foram implementados em sua integralidade, de modo que ainda não repercutiram em sua total potencialidade nos feitos em andamento.
Desse modo, os estudos existentes que apontam a demora na tramitação da falência pautaram-se em dados anteriores a 2020, inexistindo estudo específico para aferir o seu impacto. Sem tais informações, não há como se concluir que a reforma tenha se mostrado inefetiva, nem que os processos que utilizaram suas inovações sejam morosos ou incapazes de liquidar ativos com potencialização do seu valor.
A antiga pecha de morosidade do feito falimentar é, em grande parte, consequência do procedimento disciplinado pelo DL nº 7.661/45, notoriamente ineficiente. Essa legislação condicionava o início da alienação dos ativos da massa à elaboração de quadro geral de credores, gerando grande delonga ao processo de venda, com as deletérias consequências da depreciação de ativos e de aumento do custo com sua manutenção, isto é, do passivo extraconcursal. Com a promulgação da LRF e a perspectiva da recuperação judicial, aliada à péssima percepção que existia nos operadores do direito quanto aos procedimentos falimentares, houve um incremento exponencial da distribuição de recuperações judiciais, ainda que muitas delas não fossem factíveis.
A Lei nº 14.112/20 trouxe diversas previsões que tornaram o processo falimentar mais ágil e dinâmico: além de manter o não condicionamento da alienação dos ativos à conclusão do quadro geral de credores, já previsto originalmente na LRF, instituiu para tanto novas regras, tornando-a mais eficiente. Assim, afastou o conceito de preço vil e fixou prazo máximo — 180 dias —, permitindo a sua ocorrência independentemente das condições de mercado.
O projeto de lei, especificamente no tocante à alienação de bens, flexibiliza o prazo para sua ocorrência, permitindo que o plano de falência possa estipular qualquer outro, admitindo, inclusive, proposta de gestão desses ativos.
Vale ressaltar que como a relação do artigo 7º, § 2º, da LRF, elaborada pelo administrador judicial, é anexo obrigatório do plano de falência previsto no projeto, a assembleia geral de credores, que deverá ser convocada para sua apreciação, somente poderá ocorrer após a juntada da relação, ou seja, ao menos a 60 dias da decretação da quebra. Na verdade, o projeto confere ao gestor prazo de 60 dias da data em que assinou termo de compromisso para apresentar plano de falência contendo planejamento para alienação dos ativos, com cronograma para que isso ocorra.
Passa-se, portanto, de 180 dias da arrecadação para um prazo elástico, a ser fixado por credores em assembleia. Sendo assim, é razoável questionar a conveniência da propositura, diante dos objetivos de ordem pública do processo falimentar, com nítido caráter social de preservação da utilização produtiva dos bens mediante sua célere realocação eficiente na economia (artigo 75, I e II, da LRF). Por certo, o condicionamento da alienação de ativos aos interesses particulares de credores reunidos em assembleia, afasta-se desses elevados desideratos.
Os princípios do artigo 75 da LRF impõem, também, reflexão quanto à orientação trazida no projeto de que os credores serem considerados os únicos protagonistas das decisões acerca dos rumos do processo falimentar, sobretudo diante dos interesses públicos e sociais que o orientam.
A governança da formação da vontade dos credores no processo falimentar, tal como sugerido pelo projeto de lei, é outra questão que demanda atenção.
O projeto de lei reconhece que algumas de suas disposições se aproveitaram da experiência do processo de recuperação judicial, notando-se, assim, grande influência desta última na disciplina proposta para a assembleia geral de credores, em especial para deliberação do plano de falência. Esse aproveitamento, contudo, exige cautela, visto que, a despeito de ambos estarem disciplinados na mesma lei e integrarem o microssistema da insolvência, sua racionalidade é bastante distinta.
Enquanto o processo de recuperação judicial objetiva a negociação das condições de plano de recuperação judicial, com concessões recíprocas entre credores e devedor, com o intuito de prosseguimento da atividade empresarial e soerguimento da empresa, o processo de falência destina-se à liquidação do empresário insolvente, alienando seus ativos, pagando seus credores e recolocando na economia, de forma célere, ativos produtivos.
As regras de pagamento do crédito na falência são rigorosas e obedecem a parâmetros de ordem pública, evidenciando opção legislativa, de ordem pública, de dar primazia ao pagamento de determinados créditos, em detrimento de outros. Assim, os credores trabalhistas, por sua vulnerabilidade, e o crédito tributário, por sua importância social, têm seu pagamento priorizados em relação aos demais, de modo que, se os ativos não forem suficientes, somente eles receberão. Contudo, a dinâmica da assembleia de credores na falência apresentada pelo projeto de lei não favorece, nem aos trabalhistas, nem aos tributários.
Segundo o projeto, a Fazenda não participará da votação, nem da deliberação, sendo apenas intimada para se opor a ela, ocasião em que poderá questionar apenas irregularidades e ilegalidades e questões formais, mas não as condições de pagamento aprovadas. E isto quando, ao contrário da recuperação judicial, o crédito fiscal está compreendido no processo de falência!
Por outro lado, a forma de tomada das deliberações pelos credores, diante da importância que passam a assumir por força do projeto, poderá estar desconforme à realidade dos credores trabalhistas que, como é sabido, não possuem os maiores créditos na falência, nem, tampouco, recursos suficientes para se organizarem e votarem de forma coesa. A experiência das assembleias de credores em recuperações judiciais revela seu grande absenteísmo. Tudo isto pode ser fatal para os trabalhistas, sobretudo diante da possibilidade de que o plano de falência preveja descontos em créditos.
O tema merece atenta reflexão, para que não se prejudiquem os créditos a que a lei dá o maior dos privilégios. Assim, por exemplo, há previsão de assembleia inicial de credores convocada pelo juiz ao decretar a quebra para deliberar sobre a nomeação do gestor fiduciário e, posteriormente, outra, para deliberar o plano de falência. Somente nesta última que se aplicará o quórum de apuração da votação em classes, sendo que, para a primeira, se observará o quórum de aprovação geral, ou seja, de credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes ao ato, indicando grande probabilidade de incapacidade de interferência dos trabalhistas na escolha de profissional que terá atuação fundamental no processo falimentar.
Pelo projeto, ainda, a assembleia de credores para análise do plano de falências somente será convocada se houver oposição de credores titulares de 15% do total crédito da falência dentro do prazo de 15 dias de sua apresentação pelo gestor fiduciário; do contrário, será ele simplesmente homologado, sem a realização da assembleia. A sistemática lembra aquela adotada no procedimento de recuperação judicial. Contudo, enquanto nesta última há negociação de obrigações, no procedimento falimentar deve-se proceder ao pagamento dos credores, como parte da fase de liquidação da empresa, observando-se parâmetros editados por leis de ordem pública, políticas públicas tutelares do crédito.
Tampouco há clareza quanto aos limites da função deliberativa do Comitê de Credores, consoante deliberação da assembleia geral por maioria simples.
Por fim, é preciso se refletir também sobre profundas mudanças sugeridas no tocante à política pública de tutela do crédito, na medida em que o projeto admitiu o pagamento de juros para créditos extraconcursais, em detrimento de credores concursais.
Os questionamentos apresentados, acima, sugerem a necessidade de maior reflexão sobre alteração tão profunda proposta à legislação falimentar, seja porque ainda não foram identificados todos os efeitos positivos da Lei nº 14.112/20, seja porque é preciso ter cautela para aproveitar a experiência da recuperação judicial ao processo falimentar, seja, por fim — e principalmente! — por ser necessário um profundo debate acerca da conveniência e da oportunidade de apartar-se o direito pátrio de universais, tradicionais e consagradas políticas públicas de tutela do crédito.
Volta-se ao que se disse a princípio: antes mesmo de solidificar-se jurisprudência acerca das alterações introduzidas na LRF pela Lei nº 14.112/20 (esta sim, fruto de amadurecida tramitação legislativa), surge o projeto sob exame. Jurisprudência — lembra-se sempre o que ensinou Miguel Reale — é forma de revelação do direito decorrente do exercício da jurisdição, em virtude de harmônica sucessão de julgados. Está-se muito longe deste momento, há pouco mais de 3 anos da entrada em vigor da reforma de 2020.
Que a precipitada iniciativa seja freada e aperfeiçoada pelo necessário e aprofundado debate democrático das alterações propostas, que demanda tempo, evitando-se antevistas consequências maléficas ao direito da insolvência.
A profunda alteração ao procedimento falimentar proposta pelo PL 3/2024 (conjur.com.br)