Foi publicada no Diário Oficial da União (DOU), em 10/01/2024, mensagem da Presidência da República ao Congresso encaminhando projeto de lei com severas alterações na sistemática da Lei 11.101/05. O projeto já foi recebido pela Câmara dos Deputados, inclusive em regime de urgência constitucional, e passou a tramitar como PL 03/2024. Entre as diversas inovações ali trazidas, este artigo busca analisar tão somente a polêmica figura do gestor fiduciário.
No primeiro ponto, podemos afirmar a falta de técnica na redação do texto, na medida em que — ao revés do que ocorre com os demais atores do processo falimentar, como é o caso do administrador judicial (artigo 22 da Lei 11.101/05), do comitê de credores (artigo 26), dentre outros — o projeto deixa de conceituar o que seria o gestor fiduciário, bem como qual a finalidade da sua instituição e passa a discorrer de forma deslocada sobre as suas funções, simplesmente afirmando que as disposições relativas ao administrador judicial àquele se aplicam (artigo 22, §5º, da redação do projeto).
E prosseguindo, o projeto do texto normativo define que a nomeação do gestor ocorrerá caso a Assembleia Geral de Credores (AGC) da falência assim entenda como necessária, direcionando para este seleto grupo o método de escolha do principal auxiliar do Juízo no feito falimentar, já que o projeto passa a prever que a nomeação do administrador judicial, com a quebra, dar-se-á a título provisório. Uma vez nomeado, caberá ao administrador judicial a elaboração da relação de credores e dos atos urgentes até a convocação da AGC, na qual poderá ser eleita a figura do gestor fiduciário, que o substituirá (artigo 22, §6º, da redação do projeto).
Um dos pontos mais problemáticos do projeto se dá justamente em relação à eleição do gestor fiduciário pela AGC, uma vez que, por óbvio, esta escolha deve observar a proporcionalidade dos créditos e classes (artigo 35, §1º, da redação do projeto). Ocorre que a referida prática parece ressuscitar — uma espécie de retrofit — as disposições do Decreto-Lei 7.661/45 referentes à nomeação do síndico da massa, já que esta deveria ocorrer, em regra, entre os credores com maiores créditos (artigo 60 do Decreto-Lei 7.661/45). Tal disposição foi alvo de severas críticas doutrinárias, já que permitia o direcionamento desta escolha para o interesse específico dos credores majoritários.
A evolução legislativa permitiu que a nomeação do administrador judicial passasse pela convicção do magistrado, o que representou um avanço da Lei 11.101/05 em relação ao antigo Decreto-Lei. E mais, a função da administração judicial, de acordo com a lei vigente, será preferencialmente prestada por profissionais que detenham conhecimento nas áreas de direito, administração de empresas, economia e contabilidade, previsões essas que direcionam para o desenvolvimento da atividade de maneira eficiente, com experiência e estrutura organizacional adequada ao bom desempenho das funções.
Já no que tange ao gestor fiduciário, a redação do projeto não especifica qual o critério que deve ser usado para a sua escolha, deixando ao livre arbítrio da Assembleia de Credores a indicação de um nome. Neste ponto, o projeto em comento parece evidenciar uma tentativa de retrocesso legislativo, já que a possibilidade ali prevista abre brecha de credores qualificados — como as Instituições Financeiras, que não raro são as maiores credoras — e o Fisco — ante a inclusão de sua classe específica em assembleia [1] —possam dominar a escolha do gestor, dando aval para que interesses individualizados e direcionados invadam o cenário coletivo de adimplemento de débitos.
Além disso, o próprio método de eleição do gestor parece, ao que indica o artigo 42 do referido projeto [2], estar apenas submetido a um critério de votação no qual um credor majoritário — ou eventualmente um grupo de credores unidos que alcance o referido montante- possa definir, quase que unilateralmente, os rumos da falência. É de se consignar, igualmente, que o projeto não prevê nenhuma possibilidade de que o Juízo efetue um eventual controle de conflitos de interesse entre o gestor e os credores, o que enfraquece as salvaguardas do sistema falimentar.
Desse modo, o profissional que conduzia o processo, neutro, e escolhido pelo Juízo, passa a ser exclusivamente nomeado pelos credores de maior capacidade econômica na falência. Há, na hipótese, um nítido conflito de interesses entre classes de credores distintos e com poder de votação e atuação diversas, violando-se, portanto, a regra da igualdade entre os credores.
Em relação à remuneração, atualmente, cabe ao magistrado fixar a remuneração do administrador judicial cujo valor, a um só tempo, seja adequado aos padrões utilizados nas atividades privadas de mercado e não exceda os limites legais. Diante da delicadeza e importância dessa tarefa, o Fórum Nacional de Recuperação de Empresas e Falências (Fonaref) propôs a edição da recomendação 141 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dispondo sobre orientações aos magistrados para as melhores práticas na fixação dos honorários do administrador judicial.
Já a figura do gestor fiduciário, pelo projeto, não estaria submetida a qualquer teto remuneratório senão aquele escolhido pela própria AGC, assim, enquanto o administrador judicial está adstrito aos valores estanques previstos na legislação (artigo 24 da Lei 11.101/05), o gestor disporá de certa liberdade, mediante a aprovação da AGC, para que seja remunerado “de acordo com os valores praticados no mercado para o desempenho de atividades semelhantes” (artigo 35, §2º, da redação do projeto) o que pode, a depender das classes menos representadas, projetar uma diminuição dos valores sujeitos ao rateio no concurso de credores concursais, prejudicando a ordem de pagamento.
Ao que se percebe houve uma desnecessária celeridade para a tramitação deste projeto com a redação deficitária como esta proposta, sem o devido aprofundamento da matéria, o que poderia ocorrer através de discussões com setores específicos da comunidade e a consequente adição de posições já consolidadas, permitindo-se a propositura de um texto legal que represente o anseio da sociedade e não o direcionamento para que se contemple interesses individualizados em um processo coletivo, que é o que parece estar acontecendo.
[1] Bem como a participação na classe I em relação aos créditos do FGTS: “§ 1º Nas deliberações da assembleia geral de credores, na falência, será acrescentada a classe dos credores a que se refere o art.
7º-A § 2º O disposto no § 1º não se aplica aos créditos de FGTS, que serão apresentados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional na classe a que se refere o inciso I do caput do art. 41.” (NR)
[2] “Art. 42. Será considerada aprovada a proposta que obtiver votos favoráveis de credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembleia geral, exceto nas deliberações sobre: I – o plano de recuperação judicial, nos termos do disposto na alínea “a” do inciso I do caput do art. 35; II – o plano de falência, nos termos do disposto no art. 82-D; e III – a composição do Comitê de Credores, nos termos do disposto no art. 26.” (NR)
Gestor fiduciário: um retrocesso necessário? (conjur.com.br)