A Lei 14.112/2020 pode ter criado o cenário que finalmente viabiliza a exigência de regularidade fiscal das empresas devedoras para a concessão de recuperação judicial. A efetiva aplicação desse entendimento, no entanto, vai depender de uma conjunção de fatores a ser verificada caso a caso.
Essa é a opinião de juristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico depois de o Superior Tribunal de Justiça autorizar a aplicação do artigo 57 da Lei de Recuperação Judicial e Falência (LRF — Lei 11.101/2005) e vetar o pedido de uma empresa em dificuldades financeiras.
Trata-se da norma que exige a apresentação de certidões negativas de débitos tributários após a aprovação do plano de recuperação judicial pela assembleia de credores para que o processo de soerguimento seja homologado pelo juízo e, enfim, iniciado.
Até então, essa exigência era dispensada por inviabilizar a recuperação judicial das empresas. Quitar os passivos tributários, sempre muito altos, antes da homologação do plano aprovado pelos credores significaria acabar com as possibilidades de sobrevivência financeira das devedoras.
Para a 3ª Turma do STJ, o cenário mudou com a Lei 14.112/2020, que criou um programa de negociação tributária específico para as empresas em recuperação judicial, com condições atrativas e prazos mais amplos para parcelamento. Em suma, viabilizou a regularização fiscal.
Em julgamento ocorrido no último dia 17, o colegiado concluiu que já é possível aplicar o artigo 57 da LRF nos débitos em âmbito federal. Já nos débitos municipais, distritais ou estaduais, tudo vai depender da existência de leis específicas que repliquem o cenário criado no âmbito federal.
Os advogados consultados pela ConJur elogiam essa posição por permitir um equilíbrio entre o cumprimento das obrigações tributárias, que não se submetem ao plano de recuperação judicial, e a execução do próprio plano.
Isso evita que a recuperação judicial corra paralelamente às execuções fiscais sem considerar o impacto de dívidas tributárias que, ao fim do processo de soerguimento, acabam por impor novas crises financeiras às empresas, quando da sua efetiva cobrança.
Essas dívidas são sempre altas porque as empresas conseguem operar mesmo com grandes débitos fiscais. A cobrança é mais lenta, embora a legislação traga penalidades pesadas para o inadimplemento. Acaba sendo mais viável não pagar a Fazenda do que não pagar fornecedores, por exemplo.
Apesar disso, regularidade fiscal e recuperação judicial vão depender, essencialmente, de timing: a reunião de fatores que torna o momento oportuno para o desenrolar dessa situação.
Combinação temporal
O principal timing exigido é o que combina a aprovação do plano de recuperação judicial e a obtenção dos parcelamentos na Fazenda Nacional. Ambos os processos são burocráticos, com prazos específicos que podem ser afetados por intercorrências próprias.
A LRF prevê em seu artigo 56, parágrafo 1º, que a assembleia-geral de credores vote o plano em, no máximo, 150 dias após o deferimento da recuperação judicial — período que pode ser contado em dias úteis, como é a praxe no Código de Processo Civil.
A rejeição do plano ainda confere mais 30 dias para a apresentação de uma nova versão aos credores. Já a suspensão da assembleia-geral permite paralisação por até 90 dias. É só após a aprovação desse plano que, conforme o artigo 57 da lei, o credor deve apresentar certidões negativas de débitos tributários.
Já o parcelamento não tem prazo certo para ser deferido. A Instrução Normativa 2.063/2022 da Receita Federal diz que, se 90 dias após a data da formalização do requerimento o órgão não tiver se manifestado, o benefício será automaticamente concedido, desde que efetuado o pagamento da primeira parcela.
Em suma, as empresas têm de se mexer para que ambos os processos cheguem a termo de maneira próxima. Especialmente porque as consequências podem ser graves. O voto do ministro Marco Aurélio Bellizze no STJ adotou a sugestão da doutrina do professor Fábio Ulhoa Coelho: sem a comprovação da regularidade fiscal do devedor, o juiz deve sobrestar o processo até que essa medida seja cumprida, sem prejuízo de autorizar a retomada das execuções individuais e de eventuais pedidos de falência. Ou seja, suspende-se o chamado stay period.
Será suficiente?
A advogada Adriana Conrado Zamponi, sócia do escritório Wald, Antunes, Vita e Blattner Advogados, levanta alguns questionamentos: nesses casos, quanto tempo o juiz deve conferir para a obtenção das certidões pelo devedor? Até lá, como ficarão os credores? E a própria empresa?
Ela explica que, quando há um plano aprovado (com formas de pagamento, deságio, carência e outros pontos), em teoria, a empresa já está pronta para se recuperar. E a retomada das execuções individuais pode bagunçar o cenário.
“A lei buscou o equilíbrio entre possibilitar o soerguimento das empresas e o cumprimento das obrigações tributárias, que não se submetem à recuperação judicial. Não sei se é o suficiente. Na prática, vai depender de cada caso. Talvez isso seja insuficiente para algumas empresas.”
Maria Carolina Sampaio, do GVM Advogados, cita também dificuldades que podem derivar do estágio em que o débito tributário se encontra no ente público: se ainda com a Receita Federal ou já sob a tutela da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, com inscrição na dívida ativa da União.
“Se a empresa estiver em haver na Receita ou na PGFN, ela não conseguirá a certidão negativa. Junto à Receita não há programa de parcelamento incentivado para empresas em recuperação judicial. Na PGFN já existe um programa regular. Qualquer empresa consegue fazer o parcelamento de uma forma muito interessante.”
Barbara Pommê Gama, sócia do Dalazen, Pessoa & Bresciani Advogados, levanta ainda a possibilidade de o timing ser ruim para as devedoras em relação ao tamanho da dívida acumulada. “Muitos contribuintes sentem que o prazo máximo de dez anos para parcelamento não é suficiente e poderia ser estendido.”
Já o advogado Pedro Almeida, do GVM Advogados, ressalta que a exigência de certidões negativas de débito tributário, além de não ser nova, continua gerando posicionamentos divergentes nos tribunais. “Penso que essas questões que fogem do escopo do acórdão do STJ serão resolvidas caso a caso e, provavelmente, com o fundamento no princípio da preservação das empresas a nortear as decisões.”
Melhor assim
De maneira unânime, os advogados avaliam positivamente o impacto das alterações promovidas pela Lei 14.112/2020. Mais recentemente, ela já havia estabelecido para o Judiciário um equilíbrio na tutela dos atos de constrição contra empresas em recuperação judicial que são alvos de execuções fiscais.
Para Barbara Gama, trata-se de um pontapé inicial importante para permitir às empresas em recuperação judicial a regularização de seus débitos tributários. Ela acredita ser uma verdadeira inovação no ordenamento brasileiro, que merece ser reconhecida.
“As alterações trazidas pela nova legislação falimentar vieram para, de um lado, equalizar o interesse público, que, normalmente, era deixado de lado pelos contribuintes em recuperação judicial, e, de outro, preservar as empresas que passam por uma situação financeira tão complicada.”
Pedro Almeida diz que o parcelamento dos débitos fiscais, mais estendido, coaduna-se com o propósito da Lei de Recuperação Fiscal e Falência, de viabilizar o soerguimento das empresas devedoras. E Maria Carolina Sampaio explica que essas transações são tão efetivas que permitem afastar 100% de juros e multa. “Ela parcela só o valor principal e dá condições de reerguer.”
Já Adriana Conrado Zamponi cita o fato de a Lei 14.112/2020 ter estabelecido uma maior cooperação entre os juízos da execução fiscal e da recuperação judicial, evitando a paralisia de qualquer um desses procedimentos. “O impacto tem sido positivo.”
REsp 2.053.240
ConJur – Regularidade fiscal e recuperação dependerão de conjunção de fatores