A Lei 14.112/20 trouxe profundas alterações aos processos de falências e recuperações judiciais disciplinadas pela Lei 11.101/05 (LRF), destacando-se o tratamento conferido às obrigações do falido. Questiona-se se algumas dessas alterações poderiam se aplicar às falências regidas pelo Decreto-Lei 7.661/45.
É fato que o regime jurídico dos processos de falências da LRF não se aplica às falências regidas pelo Decreto-Lei 7.661/45, já que expressamente proibido pelo artigo 192 da LRF[1]. Trata-se de regra de direito intertemporal que norteou a interpretação e aplicação da LRF, permitindo a manutenção da vigência e a eficácia das regras do decreto às falências ajuizadas anteriormente ao referido marco temporal.
Observa-se que o artigo 192 não sofreu alterações pela Lei 14.112/20, sendo razoável sustentar que a reforma se circunscreveu aos processos de falências disciplinados pela LRF, e não àqueles pelo decreto, os quais continuam sem sofrer alteração em seu procedimento. É verdade que a reforma de 2020 trouxe regras que evidenciam princípios gerais falimentares, conforme se observa do artigo 75. Contudo, a possibilidade de aplicação analógica desses princípios às falências regidas pelo decreto é questão que não se discutirá neste artigo.
A Lei nº 14.112/20 trouxe, entretanto, uma única hipótese em que previu expressamente a incidência de dispositivo da LRF às falências regidas pelo Decreto-Lei 7.661/45, revogando, assim, ao menos parcial e pontualmente, o disposto no artigo 192. Trata-se de hipótese do art. 158, V, da LRF.
Com já mencionado, o regime jurídico previsto na LRF para as obrigações do falido sofreu profundas alterações com a reforma de 2020: foi revogado o artigo 157, que previa a suspensão da prescrição das obrigações do devedor até o encerramento da falência; instituiu-se prazo decadencial de 3 anos para a habilitação do crédito na falência (artigo 10, §10); e, em especial, incluíram-se, dentre as hipóteses de extinção das obrigações do falido, o decurso do prazo de 3 anos da decretação da falência (artigo 158, V — “fresh start”) e, ainda, o encerramento em si da falência (artigos 156 e 158, VI, respectivamente).
De acordo com a redação original da LRF — que, nesse ponto, não destoava do disposto no Decreto-Lei 7.661/45 —, com o encerramento da falência os prazos prescricionais voltariam a correr para as obrigações não quitadas, devendo o falido aguardar de cinco a dez anos para postular a declaração judicial de extinção de suas obrigações, a depender se ele houvesse sido condenado por crimes falimentares (artigo 158, incisos III e IV da LRF, os quais foram revogados, ou artigo 135, III e IV, do decreto). Após a reforma de 2020, o falido não precisará mais aguardar esses anos para a declaração da extinção das suas obrigações, o que, agora, é consequência direta da sentença de encerramento de falência — isso se esta for proferida em prazo inferior a três anos da decretação da quebra.
A radical alteração no regime de responsabilidade do falido aplica-se parcialmente às falências do decreto, conforme previsto no artigo 5º, §5º da Lei 14.112/20, que assim prevê: “(…) § 5º O disposto no inciso VI do caput do art. 158 terá aplicação imediata, inclusive às falências regidas pelo Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945”.
O artigo 5º da Lei 14.112/20 traz regras de direito intertemporal que orientam a aplicação de suas alterações nas falências e recuperações em andamento regidas pela LRF, sendo que, especificamente no caso da norma contida no artigo 158, VI, o legislador fez questão de excetuar a regra geral e não alterada do art. 192 da LRF, indicando que poderia ser aplicável também às falências do decreto, conforme se observa de seu parágrafo 5º acima transcrito.
A aplicação da hipótese do artigo 158, VI, da LRF às falências do Decreto-lei 7.661/45 é, por força de lei, imediata, ou seja, abrangendo as que estiverem em andamento e as já extintas e que ainda não tenham atingido as exigências do artigo 135, III e IV do referido diploma normativo.
Como consequência da alteração promovida pela reforma de 2020 no artig 158, VI da LRF, o encerramento de qualquer falência, mesmo aquelas regidas pelo decretou, passou a ser causa de extinção das obrigações do falido. Trata-se de alteração que demonstra o comprometimento do legislador de 2020 com os princípios falimentares positivados no artigo 75, III da LRF, o qual evidencia que é objetivo do procedimento falimentar o fomento ao empreendedorismo pelo célere retorno às atividades econômicas.
A reabilitação mais célere do falido permitida às falências regidas pelo decreto pela aplicação da hipótese do artigo 158, VI da LRF, pode ser muito benéfica, tendo em vista entendimento jurisprudencial pregresso que permitia a extensão dos efeitos da falência para a pessoa física de seus sócios e administradores.
Existem, é claro, ressalvas. A primeira se refere às obrigações fiscais. O artigo 191 do Código Tributário Nacional prevê que não é possível a declaração da extinção das obrigações do falido enquanto não houver prova da quitação de todos os tributos. Diante dessa previsão, deve-se entender que a declaração de extinção das obrigações na falência não abrange as obrigações fiscais.
Outra ressalva que deve ser feita refere-se à aplicação imediata desse dispositivo. Conforme apontado, houve radical mudança de orientação quanto ao regime jurídico de extinção das obrigações do falido, alterando a perspectiva legítima do credor quanto ao tempo que teria para adotar medidas para recebimento de seu crédito, mesmo após o encerramento da falência.
Não é improvável que falências já tenham sido encerradas e ainda não tenha havido o decurso de prazo de cinco ou de dez anos previstos no artigo 135, III ou IV do Decreto-Lei 7.66/45, de modo que o credor ainda teria direito de adotar ações individuais em face do falido. Também não é improvável que existam ainda valores depositados em ações falimentares encerradas, ainda não levantados pelos credores, aguardando decurso do prazo para declaração de extinção da obrigação do falido.
A aplicação imediata do artigo 158, VI às falências regidas pelo decreto poderia gerar situações injustas, em vista da abrupta mudança legislativa, que rompe expectativas que foram legitimamente fundadas sob a égide da lei anterior. Não pareceria razoável, assim, simplesmente se declarar a extinção de valores e se permitir o levantamento de valores depositados pelo falido. Nesse ponto, observa-se que o artigo 23 da Lei de Introdução às Normas Brasileiras prevê que decisão judicial que estabelecer novo condicionamento de direito, deve prever regime de transição para que ele seja cumprido de forma proporcional, equânime, eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.
Consequentemente, para se evitar surpresas ou violação de legítimas expectativas criadas, uma solução que se mostra razoável seria a aplicação do disposto no artigo 149 da Lei nº 11.101/05, por analogia, antes de se declarar extintas as obrigações dos falidos em falências regidas pelo Decreto-Lei nº 7.661/45. Essa solução permite equilíbrio entre o direito individual de os credores, apresentando alternativa para conformar sua expectativa existente da legislação anterior, permitindo, por outro lado, atendimento célere às reformas trazidas pela Lei nº 14.112/20.
Constata-se, assim, que a Lei 14.112/20 trouxe também para as falências regidas pelo decreto de 1945 alterações relevantes no tocante às obrigações do falido, as quais apesar de não permitirem a extensão a elas da integralidade do conceito de fresh start, permitem que o falido não precise aguardar até uma década após o encerramento da falência para se desvincular de suas obrigações.
[1] “Art. 192. Esta Lei não se aplica aos processos de falência ou de concordata ajuizados anteriormente ao início de sua vigência, que serão concluídos nos termos do Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945”.
https://www.conjur.com.br/2022-jun-14/direito-insolvencia-fresh-start-obrigacoes-falido