24 de maio de 2020, 16h06
Nassim Taleb é uma das figuras do momento. Ele é autor de best-sellers filosóficos e matemáticos (que, apesar disso, são lidos com destaque na área financeira), bate de frente com acadêmicos tradicionais (inclusive com ganhador de prêmio Nobel) e assumiu ares de invencibilidade ao supostamente auxiliar, na condição de conselheiro, uma gestora a obter retornos gigantescos durante o atual período de turbulência.
Embora crises econômicas costumem ser acompanhadas pela mitificação de gurus que teriam previsto o evento (por exemplo, em 2008 foi Nouriel Roubini, o “Dr. Doom”, que pouco tempo depois acabou sofrendo financeiramente, ele próprio, de uma catástrofe profissional), a situação de Taleb parece ser distinta, pela própria natureza de seu trabalho.
Em seu livro “A lógica do Cisne Negro”, Taleb aponta, grossíssimo modo, que eventos de elevada magnitude e baixa probabilidade de ocorrência são impossíveis de se prever e, justamente por isso, são ignorados pela maioria dos acadêmicos e profissionais. Exceto depois que efetivamente ocorrem. Nesse caso, busca-se racionalizar o processo pelo qual tal evento ocorreu, demonstrando-se, a posteriori, sua possibilidade de previsão e falta de aleatoriedade. O nome do livro referencia famoso exemplo (usado, e.g., por Karl Popper para tratar de falseabilidade) advindo da crença, até o século XVII, de que somente existiam cisnes brancos, pois na Europa nunca havia se visto outro tipo.
Contudo, como observação, veja-se que Taleb não considera a atual crise, decorrente da presente pandemia, como um cisne negro, mas, sim, como um cisne branco, pois ela foi prevista por muitas pessoas — ele, inclusive.
Apesar dessa posição explícita de Taleb, diversos agentes econômicos não contavam, mesmo no início da crise, com uma queda tão abrupta de demanda — agora, chega-se a estimar a queda do PIB brasileiro em até 11% em 2020. Fiquemos, então, metafórica e cromaticamente no meio do caminho: a atual pandemia seria um cisne cinza — diz-se “metaforicamente” porque, claro, o problema lógico de se pressupor a inexistência de um cisne negro é exatamente o mesmo de pressupor a inexistência de um cisne cinza.
Já no segundo livro de Taleb, que é, aqui, de particular interesse, “Antifrágil“, o autor argumenta que o antônimo de frágil não é robusto ou forte — pois tais adjetivos demonstram resistência a choques, mas não fortalecimento em tais eventos. Para o autor, o oposto de frágil é “antifrágil“ — tudo aquilo que se torna mais resiliente em ambientes expostos a estressores. Dessa forma, deveríamos pensar em instituições e sistemas que não só resistam ao estresse, mas que dele se beneficiem e, consequentemente, tornem-se melhores.
A leitura dos dois livros de Taleb brevemente tratados acima permite a realização de algumas provocações acerca do futuro da recuperação judicial no Brasil pós-pandemia.
Em momentos de grave crise econômica, é corriqueiro o ímpeto reformista em termos de insolvência. Todavia, historicamente, essas reformas costumam abordar questões conjunturais referentes especificamente àquela crise, e não como tornar o sistema como um todo mais “antifrágil“.
Parece ocorrer essa mesma situação com as propostas atuais de reforma da Lei nº. 11.101/2005 (vide PL 1397/20). São propostas que oferecem destaque a instrumentos que envolvem, por exemplo, a moratória para resolver o problema econômico atual, e não há maior foco em medidas estruturais. Inclusive, leitura similar a esta é compartilhada por Spinelli e Tellechea.
Mas quais seriam essas possíveis reformas estruturais? Para não se perder uma oportunidade advinda de um cisne negro (ou cinza), a tônica das reformas deveria atacar alguns dos problemas persistentes da aplicação da recuperação judicial pré-Covid-19, e não somente remediar problemas hodiernos. Com esse contexto em mente, são feitas algumas provocações:
Permitir que os agentes ineficientes quebrem é ‘antifrágil’. Taleb nota que, para um sistema econômico ser “antifrágil”, é necessário que seus componentes individuais sejam frágeis. Ou seja, o que torna o sistema “antifrágil” é a possível falibilidade individual de seus agentes ineficientes. Em microprocessos de teste e erro é que ocorreria o avanço técnico, e só com a exclusão dos inaptos é que o todo se tornaria resiliente.
No contexto da Covid-19 no Brasil, medidas conjunturais de auxílio e fôlego financeiro são necessárias. Entretanto, esse apoio fulcral possui matiz econômico e a simples moratória por permissivo legal não vai resolver o problema em sua natureza, por mais que propostas nesse sentido sejam nobres em seu escopo. Isso porque a crise não é limitada a uma empresa, tampouco a um setor específico. Ela é sistêmica. A moratória de um agente impactará de modo sensível todos os demais em seu entorno e, no atual momento, a integralidade dos agentes econômicos já está fragilizada. Em outras palavras, a dívida de um agente (em crise) é o recebível de outro (que hoje também está em crise). Gera-se um efeito multiplicador em cadeia. Além disso, a moratória indiscriminada favoreceria principalmente aquelas empresas que já se encontravam em mau estado antes da pandemia.
Permitir que agentes quebrem, porém, pode ser problemático em curto prazo e em termos distributivos. Afinal, existe fricção na transição entre um projeto malsucedido e uma nova empreitada — desde o estigma da falência para o empresário até o período de desemprego para o trabalhador. Assim, outra tônica “antifrágil“ é necessária:
Permitir um recomeço pelo empresário é ‘antifrágil’. Taleb ressalta que a sociedade deveria tratar o empresário falido da mesma forma que trata um soldado falecido (“In order to progress, modern society should be treating ruined entrepreneurs in the same way we honor dead soldiers”), pois foi ele quem pagou o preço para a melhoria do sistema como um todo (“Someone paid a price for the system to improve”).
Esse tipo de estratégia envolveria tanto: I) mecanismos específicos e céleres para reorganização (ou não) de pequenos empresários, que são empreendedores em série e cujos negócios malfadados raramente possuem o que ser dividido; quando II) mecanismos para uma rápida divisão de ativos na falência, para que o empreendedor volte a desempenhar atividade econômica (o chamado fresh start).
Ressalte-se que o procedimento da falência não vem tendo destaque nas discussões do atual âmbito reformista, recebendo atenção particularmente o procedimento de recuperação judicial.
Culturalmente, também há necessidade de abandonar o estigma do falido. Quebra-se a atividade, mas não o empreendedor, que voltará ao mercado com seus recursos e expertise em outro empreendimento.
Coibidos os casos de abuso por parte do empresário em dificuldade, a efetividade da falência é condição necessária para uma recuperação judicial “antifrágil“ e essa deveria ser uma preocupação estrutural (mais ambiciosa do que propostas conjunturais) em se reformar a Lei de Recuperação e Falência.
https://www.conjur.com.br/2020-mai-24/eduardo-mattos-recuperacao-judicial-antifragil