By Cássio Cavalli • 23 de março de 2020| Uncategorized
Por Cássio Cavalli.
A crise deflagrada pelo Coronavírus acarretou impactos humanitários, sanitários e econômicos sem precedentes na sociedade globalizada. Os desafios para a superação da crise são de proporções gigantescas, a começar pelo fato de que se apresenta perante a humanidade o Paradoxo da Pandemia, em que as medidas sanitárias de distanciamento social colidem com os imperativos econômicos de prover o mínimo às populações para que possam se isolar em quarentenas. Ou seja, de um lado, impor distanciamento social por meio de quarentenas constitui a forma mais eficiente para se achatar a curva de contaminados de modo a não sobrecarregar o sistema de saúde. De outro lado, para que milhões de pessoas economicamente vulneráveis possam se isolar, é imperativo que se lhes assegure o mínimo existencial, para que possam sobreviver enquanto contribuem para a supressão do vírus. Parece que a promoção de um objetivo prejudica o outro, e vice-versa. Mais do que isso, o Paradoxo da Pandemia não é estático, já que seus efeitos se distribuem no tempo: a contenção do vírus com medidas de quarentena podem acentuar a crise econômica sem precedentes, de modo que mesmo após a humanidade derrotar o vírus ainda terá que lutar com tragédias humanas e sociais de imensas proporções decorrentes dos danos causados ao tecido social pela pandemia.
Por isso, temos que fazer as melhores escolhas, e rapidamente, para que possamos minimizar as perdas que a pandemia imporá à humanidade e ao nosso país.
A primeira escolha, por imperativo moral e, no caso do Brasil, por imperativo constitucional, é colocar as pessoas em primeiro lugar. O primeiro desafio é identificar o que devemos fazer para que as pessoas humanas possam ser protegidas do flagelo do vírus e da calamidade da fome. Para que possam sobreviver à quarentena, as soluções envolvem programas de distribuição gratuita de renda mínima às populações vulneráveis, de distribuição de recursos como alimentos, medicamentos, e serviços essenciais como luz, água e comunicação. Na parcela da população vulnerável encontram-se milhões de profissionais autônomos que não estão ao abrigo de redes de proteção e cuja renda já foi dizimada pela estagnação econômica da pandemia. Essas soluções devem ser implementadas pelo estado, notadamente pelo governo central, e pela sociedade civil organizada nas empresas, associações e centros comunitários. Empresas devem fazer o máximo ao seu alcance para produzir e fornecer produtos necessários ao combate da pandemia, e fornecer alimentos e apoio financeiro a seus empregados e colaboradores. Se não fizermos isso, há risco real de ruptura do tecido social, com convulsões causadas pela fome e pelo medo cujas proporções são aterrorizantes. O tempo e o custo humano para reconstruir o país sem dúvida excederão qualquer esforço que se faça hoje para proteger nossos concidadãos.
É consabido que aproximadamente 60 milhões de brasileiros estão superendividados e não possuem poupança para se sustentarem sem trabalho. Esse número tende a aumentar muito com a recessão econômica decorrente da pandemia. Assim, uma vez superado o vírus, milhões de brasileiros terão pela frente que se dedicar não a reconstruir o país, mas a limpar os destroços que restaram, sendo despejados de suas casas e tendo que encontrar onde morar e como fazer mudanças, empreendedores de pequeno porte tendo que fechar portas, desocupar lojas, devolver equipamentos, ao invés de retomarem suas atividades com rapidez para gerar bem-estar para si e para a sociedade. Esse trabalho, de proporções hercúleas, consumirá grande parte dos esforços de nossa população. Além disso, milhões de empreendedores reincorrerão em custos afundados para começar novos negócios, como por exemplo achar um local para se estabelecer, treinar funcionários e celebrar novos contratos. Para uma retomada econômica mais rápida, precisamos urgentemente proteger essa imensa parcela da população, por dois mecanismos distintos: (i) renda mínima e suporte material acima referidos, para que possam atravessar o período de isolamento social; e (ii) a adoção de regras de insolvência pessoal que permitam a liberação de dívidas.
O Brasil não possui lei de insolvência de pessoas naturais não empresárias. Porém, o Brasil pode e deve se inspirar no exemplo dos Estados Unidos, que possui uma lei de insolvência que pode ser utilizada por empresas e por consumidores, e que desde meados da década de 1990 já é utilizado por mais de um milhão de pessoas físicas que enfrentam dificuldades financeiras. Este processo de insolvência pessoal funciona da seguinte forma: a pessoa superendividada preenche um formulário pedindo a um juiz que a libere de suas dívidas (discharge). Nesse formulário, a pessoa indica e entrega seus bens ao juiz (normalmente, não há, pois são pessoas pobres), diz que não possui meios de pagar suas dívidas, e o juiz, em aproximadamente duas semanas, dá uma ordem de liberação das dívidas dessas pessoas. A pessoa é devolvida ao mercado de crédito a consumo e ao empreendimento livre de dívidas.
Há diversos fundamentos para a liberação de dívidas. Um deles, é de matiz judaico-cristã: há na Bíblia diversas passagens que relatam perdões de dívidas de populações pobres e escravizadas. Das diversas passagens em Mateus, 18, 23-34; em Levítico, 25, 8-13; e em Deuteronômio, 15, 1, 2 e 3; destaca-se a oração do Pai Nosso, em Mateus 6, 12, em uma das traduções atualmente adotada em países de língua inglesa, que registra: “Perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores.” Pode-se ler o registro bíblico como um registro ético profundamente insculpido nas sociedades humanas, segundo o qual dívidas que o devedor jamais conseguirá pagar não podem ser mantidas e devem ser perdoadas. Na linguagem bíblica, associa-se à existência de dívidas impagáveis à escravidão. Na perspectiva antropológica de David Graeber, na monumental obra Debt the first 5.000 years, o registro bíblico reflete a preocupação real de devedores cujos familiares eram escravizados por dívidas em patamares que se tornavam insuportáveis em tempos de crise decorrente de quebras de safra. Essa preocupação moral e ética, aliás, empresta fundamento às normas jurídicas que autorizam a extinção das obrigações em razão da impossibilidade superveniente de prestar. Isto é, se o devedor deve cumprir algo cuja execução se tornou impossível, a obrigação deixa de existir.
A liberação de dívidas em processos de insolvência pessoal também encontra fundamento no utilitarismo, pois há um aumento de bem-estar da coletividade ao assegurar-se ao devedor um fresh start, isto é, um recomeço sem dívidas para as suas atividades de produção e de consumo. Aqui, manifesta-se em cheio o comunitarismo da filosofia utilitarista. De fato, não há porque deixarmos milhões de brasileiros enredados em teias de dívidas e de cadastros de maus pagadores por dívidas que jamais poderão ser pagas. Com isso, apenas excluímos do jogo econômico milhões de concidadãos que poderiam dedicar suas energias à produção de bem estar coletivo, ao invés de ficarem imobilizados com um nome sujo na praça que os torna párias sociais. Aqueles que hoje alugam um carro para dirigir para um aplicativo, com o nome sujo, não poderão mais fazê-lo. Assim como milhões de empreendedores individuais dos mais diversos setores da economia.
É desejável e possível que sejam imediatamente adotadas leis de insolvência pessoal que assegurem a liberação de dívidas de brasileiros. Estas leis devem ser elaboradas de modo a que possamos proteger dois grandes sistemas da infraestrutura institucional brasileira: o sistema financeiro e o sistema judicial.
Quanto ao sistema financeiro, a implementação do discharge deverá ser realizada em sincronia com ajustes da regulação bancária que permita aos bancos liberar as provisões de créditos de realização duvidosa e possam se beneficiar integralmente dos prejuízos fiscais daí decorrentes. Ademais, como recordou meu colega Bruno Salama, o Brasil já implementou um cadastro positivo de crédito, que era o pressuposto para adotarmos lei de insolvência pessoal.
Já no que respeita ao sistema judicial, é imperativo que o procedimento judicial de liberação de dívidas seja simples e rápido, sem excesso de formalidades. Há formas de se implementar isso, inclusive pela adoção de procedimentos administrativos. Seria também possível evitar o congestionamento do Poder Judiciário adotando-se medidas como as descritas nas passagens da Bíblia acima referidas, com um perdão geral de dívidas em que todas as tábuas em que são registradas as dívidas são quebradas. Essa medida pode ser adotada setorialmente, mas não creio ser a mais adequada para os consumidores. A construção de um marco institucional que proteja contra as agruras do superendividamento pode significar um grande avanço civilizatório no Brasil que a trágica pandemia pode nos legar.
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