Daniel Carnio Costa
A recuperação judicial de empresas tem sido um dos assuntos jurídicos mais comentados nos últimos anos. Desde o início da fase mais aguda da crise econômica brasileira, as ferramentas jurídicas que tratam da insolvência empresarial deixaram de ser assunto restrito aos jornais especializados em economia e passaram a ocupar as manchetes dos jornais mais populares do Brasil. Isso porque, grandes empresas de atuação nacional e mesmo alguns dos mais importantes grupos empresariais do Brasil ajuizaram pedidos de recuperação judicial como forma de tentar superar a crise econômica de suas atividades. Assim, ninguém mais pode se tornar indiferente a essa ferramenta jurídica, uma vez que os credores, diante de um pedido de recuperação judicial, se veem impactados pelo processo, ainda que contra sua vontade. E quem são os credores envolvidos num processo de recuperação judicial de uma grande empresa? São os empregados, os consumidores, outras empresas fornecedoras e os financiadores da atividade empresarial, como os bancos e fundos de investimento.
Nesse sentido, é importante entender como funciona o mecanismo da recuperação judicial de empresas. Trata-se de instrumento criado pelo sistema de insolvência empresarial para ajudar a empresa viável, mas em crise, a superar esse momento de dificuldade e manter a sua atividade e todos os benefícios dela decorrentes, ou seja, os postos de trabalho, a renda dos trabalhadores, a circulação de bens, produtos, serviços, riquezas em geral e o recolhimento de tributos.
No modelo brasileiro inaugurado pela lei 11.101/05, o Poder Judiciário deve ajudar as empresas a superar o momento de crise através da criação, no bojo da recuperação judicial, de um ambiente de negociação equilibrada entre credores e devedores, a fim de que os agentes de mercado possam ajustar um plano de recuperação que atenta minimamente aos interesses da maioria dos credores e, ao mesmo tempo, viabilize a manutenção das atividades da empresa com a preservação dos empregos, dos tributos, da circulação dos produtos, serviços e das riquezas em geral.
A negociação entre credores e devedores é verdadeiramente central no processo de recuperação. E deve ser prestigiada a solução encontrada pelos agentes de mercado para a superação da crise da devedora. Bem por isso é que se afirma a existência do princípio da Soberania da Decisão dos Credores em Assembleia Geral de Credores.
Segundo esse princípio, os credores deverão decidir de forma soberana, em reunião denominada Assembleia Geral de Credores, acerca do plano de recuperação da empresa, aprovando ou rejeitando as propostas apresentadas pela devedora.
Entretanto, esse princípio da Soberania dos Credores deve ser bem compreendido, a fim de não gerar consequências contrárias ao próprio espírito da lei recuperacional, que visa sempre e em última análise tutelar o interesse social, decorrente da preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial.
Embora os credores devam decidir sobre as propostas de recuperação apresentadas pela devedora, de forma soberana, deve-se compreender que esse processo de decisão deve ser monitorado judicialmente, a fim de se garantir que a decisão de mercado seja compatível com a preservação dos benefícios econômicos e sociais buscados pelo instituto da recuperação da empresa.
A jurisprudência dos Tribunais brasileiros já afirmou – com acerto – que o juiz não deve interferir nos aspectos negociais do plano de recuperação judicial, mas, por outro lado, tem o dever de controlar os aspectos legais do plano de recuperação judicial
Não cabe ao juiz decidir, por exemplo, sobre o percentual de deságio proposto pelo devedor, ou sobre o parcelamento do pagamento da dívida, vez que esses são aspectos a serem decididos pelos credores em AGC (Assembleia Geral de Credores). São os agentes de mercado que devem avaliar se a proposta feita pela devedora tem sentido econômico e será capaz de conduzir a atividade à desejada recuperação.
Entretanto, deve o Poder Judiciário controlar a legalidade da decisão dos credores e os aspectos legais do plano de recuperação judicial.
Muito embora já seja pacífico que o juiz pode fazer o controle de legalidade do plano de recuperação judicial, na prática os problemas de identificação dos limites entre legalidade e mérito se apresentam com frequência.
Há casos em que o juiz reputa ilegal uma cláusula que estabelece um percentual exagerado de deságio, com fundamento em algum princípio constitucional. Outras vezes, anula integralmente o plano de recuperação judicial porque a maioria dos credores aprovou a extensão da novação aos fiadores e coobrigados, em desacordo com o que diz a lei 11.101/05.
Embora a jurisprudência diga que o juiz deve fazer o controle de legalidade do plano, a lei não apresenta critérios para que magistrado exercite o referido controle.
Portanto, a proposta do presente texto é apresentar um critério prático para o exercício do controle de legalidade do plano de recuperação judicial, estabelecendo limites claros entre mérito e aspectos legais das decisões dos credores e orientando a conduta de todos os agentes envolvidos no processo recuperacional.
Trata-se do critério tetrafásico que já vem sendo aplicado – com sucesso – na 1a vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.
O controle de legalidade do plano de recuperação judicial deve ser feito em quatro fases.
A primeira fase, e mais evidente delas, é aquela em que se realiza o controle das cláusulas do plano de recuperação judicial. Deve-se verificar se a cláusula do plano, mesmo que aprovada pela maioria dos credores, viola alguma norma de ordem pública existente no ordenamento jurídico. Assim, por exemplo, se os credores aprovam uma cláusula que imponha a morte do devedor por enforcamento, caso descumpra o pagamento da dívida renegociada (cláusula que provavelmente seria aprovada por unanimidade em todas as classes de credores), tal cláusula não poderá ser homologada judicialmente por violar normas cogentes, de ordem pública. A vontade dos credores, embora soberana quanto ao mérito do plano, não pode se sobrepor à lei de ordem pública. Um exemplo mais real desse tipo de cláusula, seria o da cláusula que diz que haverá convolação da recuperação em falência em caso de descumprimento de obrigação, mesmo com vencimento posterior aos dois anos de fiscalização legal. As consequências do descumprimento das obrigações da recuperanda são reguladas de forma cogente pela lei 11.101/05, não estando na esfera de disponibilidade dos credores.
Feita a verificação da compatibilidade das cláusulas do plano com as normas de ordem pública, passa-se à segunda fase do controle de legalidade.
A segunda fase é aquela que impõe a verificação da existência de vícios do negócio jurídico representado pela aprovação do plano pelos credores em AGC. A natureza jurídica da decisão dos credores em AGC é de negócio jurídico e, portanto, cabe ao Poder Judiciário verificar se tal negócio jurídico está isento de vícios de consentimento ou de vícios sociais (Código Civil, Capítulo IV do Livro III). São eles: erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão, simulação ou fraude contra credores.
Nessa segunda fase, o juiz deve controlar a higidez da formação das maiorias de aprovação do plano de recuperação judicial, certificando-se de que os credores estavam devidamente informados sobre o conteúdo do plano; se não foram coagidos, enganados ou votaram com a vontade viciada pelo estado de perigo. Da mesma forma, deverá o juiz verificar se não ocorreram simulações entre grupos de credores e a devedora, a fim de garantir a aprovação do plano, ou mesmo a realização de condutas fraudulentas para garantia de aprovação do plano, em prejuízo da maioria dos credores.
É evidente que o juiz somente conseguirá exercer eficazmente o controle sobre a higidez da formação das maiores de aprovação do plano, se for municiado de informação suficiente e evidenciadora da existência desses vícios. Essa será a função do administrador judicial e dos credores em geral.
Assim, por exemplo, o juiz não deverá homologar plano de recuperação que tenha sido aprovado com base na construção fraudulenta de quórum de aprovação, pela criação de credores inexistentes que atuam no processo como alter-ego da devedora, fundada em cessões de crédito simuladas ou no tratamento desigual de credores titulares da mesma posição jurídica, desinformação de credores ou em práticas fraudulentas de afastamento dos credores do momento da votação do plano.
A terceira fase de controle judicial do plano consiste na verificação da legalidade da extensão da decisão da maioria dos credores aos demais credores dissidentes. Trata-se de uma fase muito mais sutil de controle. Muitas vezes, a cláusula é legal e a decisão da maioria dos credores é isenta de vícios. Entretanto, a aplicação da cláusula aos credores dissidentes não pode ser feita para não violar norma de ordem pública.
Um bom exemplo é o da cláusula do plano, aprovada pela maioria dos credores, que diz que a novação da obrigação se aplica tanto ao credor principal, quanto ao coobrigado ou avalista.
O crédito é direito disponível, não havendo impedimento legal para que o credor perdoe a dívida do devedor principal e também do coobrigado ou do avalista.
Portanto, nesse aspecto não haveria ilegalidade nessa cláusula.
Entretanto, o art. 49, p. 3o, da lei 11.101/05 diz que os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados em regresso.
Tem-se, assim, que o credor poderá perdoar o coobrigado ou avalista, se assim desejar, pois o crédito é direito disponível. Entretanto, os credores dissidentes, que não concordaram com essa cláusula, possuem na lei (art. 49, p.3o) a proteção à sua pretensão de preservar seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados em regresso.
Assim, essa cláusula é válida, mas se aplica apenas aos credores que concordaram expressamente com o seu teor. Os seus efeitos não podem ser estendidos aos credores dissidentes (que votaram contra a cláusula, que se abstiveram, ou que se ausentaram). A extensão dos efeitos dessa cláusula aprovada pela maioria aos credores dissidentes (minoria) viola norma de ordem pública (lei 11.101/05, art. 49, p. 3o).
Na prática, o juiz deve homologar a cláusula com a ressalva de que seus efeitos se aplicam apenas aos credores concordantes e que os credores dissidentes preservam os seus direitos contra os coobrigados e fiadoras.
Por fim, a quarta fase de controle de legalidade do plano diz respeito à análise da abusividade do voto do credor. O voto do credor será considerado abusivo se não for utilizado de forma compatível com o exercício do seu direito. Nesses termos, o voto que não tem sentido econômico, e que coloca o credor em posição mais desfavorável na falência do que estaria na recuperação judicial, é considerado abusivo. Mas não é só. Será também considerado abusivo o voto do credor que não for exercido de forma compatível com a função social da recuperação judicial. Vale dizer, ainda que o credor vote de forma compatível com a realização do seu interesse particular, sua posição poderá ser desconsiderada na medida em que represente uma barreira intransponível à realização dos interesses público e social buscados pelo processo recuperacional.
Por exemplo, se um credor se recusa a negociar, insistindo em receber 100% de seu crédito, ele age, em tese, de forma legítima e de acordo com a realização de seu interesse particular. Entretanto, se esse voto for decisivo para determinar o encerramento de atividade empresarial saudável, com o desaparecimento dos empregos, da renda, dos produtos, dos serviços e dos tributos, o juiz deverá desconsiderar esse voto, fazendo prevalecer o interesse social sobre o interesse particular de um credor específico.
Essas situações aparecem sempre que um ou alguns credores, com alto poder de dominância em sua respectiva classe, se recusam a colaborar com o processo recuperacional, agindo exclusivamente no seu interesse particular, ainda que em prejuízo dos demais credores e do interesse social.
O exercício do controle tetrafásico de legalidade do plano de recuperação judicial preserva a soberania dos credores no que tange ao mérito do plano – preservando a decisão de mercado quanto à solução para superação da crise da empresa devedora – e ao mesmo tempo garante a higidez da decisão dos credores e a compatibilidade dessa decisão com os fins sociais do processo de recuperação judicial, fazendo prevalecer sempre o interesse social/público sobre o interesse particular.
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